Ana Sofia Costa e Paulo Santos praticam boccia desde que entraram nos centros da União das Misericórdias e no final de junho, brilharam ao mais alto nível nos Jogos Europeus da Juventude na Finlândia

Dentro do pavilhão, eles são campeões. Dominam as regras, estudam a trajetória das bolas e gerem a ansiedade associada às provas competitivas. Ana Sofia Costa e Paulo Santos praticam boccia desde que entraram nos centros da União das Misericórdias Portuguesas em 2010 e 2014, respetivamente, e desde então têm vindo a somar títulos, carimbos no passaporte e, sobretudo, vontade de superar desafios. No final de junho, brilharam ao mais alto nível nos Jogos Europeus da Juventude (Finlândia) e trouxeram três medalhas ao peito (prata e ouro para Ana Sofia e prata para Paulo Santos), que lhes valeram um voto de louvor aprovado por unanimidade na Assembleia da República (ver caixa).

Para os jovens atletas com 17 (Paulo) e 23 anos (Ana Sofia), o boccia significa superação de limites, uma aprendizagem constante e uma forma de estar na vida, que os completa a vários níveis (desportivo, social e académico). “É uma das coisas mais importantes na minha vida. Até sonho com o boccia”, revela Ana Sofia, num momento de descanso entre provas, durante o Campeonato Nacional de Boccia (categoria individual), em Torres Novas. Nesse dia, os resultados não foram os esperados, mas, como fez questão de lembrar o treinador David Henriques, “é nas derrotas que aprendemos o caminho das vitórias”.

Os treinadores são verdadeiros mentores na vida destes atletas. Impõem ritmo de trabalho e transmitem a confiança que falta em momentos de derrota. Exemplo disso é o lema criado pelo “mister David”, que a jovem e a parceira de competição, Celina Gameiro, repetem em uníssono, como se de um mantra se tratasse: “lutar sempre, vencer às vezes, desistir nunca”.

Quando estão as duas em campo, um olhar é suficiente para serenar os ânimos.
Enquanto o adversário joga, sabem ler no rosto da outra as palavras que não podem pronunciar. “Quando estamos em jogo, fecho os olhos para transmitir calma à Ana”, explica a auxiliar do centro de atividades ocupacionais, do Centro João Paulo II, em Fátima. “Mas tu já consegues gerir muito melhor as emoções, estás a trabalhar bem”, elogia logo de seguida, dirigindo-se à jovem.

Num desporto em que o desgaste é sobretudo mental, o autocontrolo e gestão emocional são determinantes para o desempenho dos atletas. O boccia é um desporto de tática, que exige perícia, concentração e inteligência dos participantes, sejam eles jovens ou idosos, pessoas com ou sem deficiência. Pode ser praticado por atletas com paralisia cerebral, disfunções neurológicas ou neuromusculares, de forma individual, a pares ou em equipa, com o uso das mãos, pés ou instrumentos de apoio. No caso de Ana Sofia (categoria BC3), o lançamento da bola é feito com recurso a uma calha e a um capacete com ponteiro, enquanto Paulo Santos (BC4) executa as jogadas, sem o auxilio de um acompanhante ou de dispositivos.

No desporto escolar, onde se insere o jovem aluno da Escola Padre Bento Pereira, em Borba, as regras são semelhantes, mas não idênticas às do desporto federado, com o objetivo de preparar os atletas para o contexto competitivo. O residente do Centro Luís da Silva treina em média duas vezes por semana, mas o treinador Joaquim Silva está empenhado no reforço da preparação do atleta com vista à “construção de um percurso a nível nacional e internacional”.

O convite para integrar a comitiva portuguesa nos Jogos Europeus da Juventude, de 25 a 30 de junho, inseriu-se nesta estratégia de formação e lançamento de novos talentos, conforme nos explicou o selecionador nacional de boccia, Luís Ferreira. “O mais importante nesta prova não é tanto o resultado, mas a motivação dos atletas. É preciso investir nos jovens para que haja rotatividade e aumento da competitividade. Tens de gostar e ter empenho porque a competitividade é cada vez maior a nível internacional”.

Hoje em dia, o desporto escolar é uma das fontes de captação de novos talentos em Portugal, permitindo alargar a base de recrutamento do desporto paralímpico a nível nacional. Apesar desse esforço, o presidente do Comité Paralímpico Português (CPP), José Lourenço, revela que os padrões de participação desportiva das pessoas com deficiência ainda estão muito aquém da média europeia. “Precisamos de alargar a base de recrutamento em todas as modalidades”, disse em entrevista ao DN, em 2018. Apesar das tentativas de contacto, não foi possível falar diretamente com o presidente do CPP.

Embora não seja garantida a participação no projeto paralímpico, em 2020, a motivação dos jovens atletas veio redobrada da Finlândia, o que significa que parte do objetivo foi cumprido. “Foi uma experiência única e uma grande oportunidade para mostrar o que sou. Acho que isso já define tudo”, revela o jovem de 17 anos, que este ano se sagrou campeão nacional de boccia, em desporto escolar, pelo segundo ano consecutivo.

Os treinadores que os acompanham desde o início acreditam que a integração na sociedade tem sido alcançada através do boccia. “A verdadeira inclusão está aqui porque há êxito, resultados e objetivos concretos”, considera Joaquim Saraiva, professor de educação física no Agrupamento de Escolas de Borba. Hoje, o Paulo Santos é um “membro da comunidade escolar com algum destaque, em virtude do seu percurso desportivo e académico”.

No caso de Ana Sofia, as deslocações proporcionadas com os estágios da seleção nacional e as provas internacionais têm permitido conhecer outros atletas, paisagens e línguas novas. Para o administrador delegado do CJPII, Joaquim Guardado, que acompanha esta evolução na retaguarda, as competições são “uma maneira de viajar e de conhecer outros mundos. Ela está muito contente e isso motiva-nos muito. A próxima etapa é ensiná-la a expressar-se corretamente em inglês”.

A Ana Sofia e o Paulo fazem parte de um pequeno grupo de utentes com alguma autonomia, em ambos os equipamentos, que conseguiram, com dedicação e apoio dos técnicos, competir com outros países do mundo. Um facto que orgulha os colegas, amigos, familiares e todos aqueles que os viram crescer. “É um privilégio enorme ter um campeão no Centro Luís da Silva. Vamos continuar a dar-lhe todo o apoio possível para que continue a progredir numa coisa que gosta de fazer e em que é bom. Há que dar valor a quem o tem e o Paulo é um ser humano espetacular”, congratula-se Aurelino Ramalho, administrador delegado do CLS.

Dentro do pavilhão, o mundo é deles. Avançam de cabeça erguida, “tratam as bolas por tu” e cumprimentam os adversários com um sorriso no rosto. Fora das quatro paredes, o mundo é de todos, mas as medalhas trazem o reconhecimento e a visibilidade que a modalidade ainda não tem. Entre a expetativa e a apreensão, o futuro escreve-se com trabalho diário, a amizade dos colegas de casa e o apoio de alguns familiares. Agora, o segredo é continuar e “fazer sempre melhor”, como nos explica Paulo Santos: “Quero começar pequeno e futuramente ser grande, cada vez melhor”.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas