Centro Comunitário da Misericórdia do Seixal acompanha as famílias dos bairros clandestinos de Santa Marta do Pinhal

No Bairro de Santa Marta do Pinhal, em Corroios, as famílias vivem em habitações precárias, com paredes de tijolo, telhados de zinco e sem fornecimento de água e eletricidade, enquanto aguardam novo programa de realojamento municipal. Os primeiros habitantes chegaram ao concelho do Seixal na década de 1960, no âmbito de uma vaga de imigração dos PALOP, e instalaram-se em bairros clandestinos como os da rua C para se empregar na construção civil e industria metalúrgica. Visto de fora parece pequeno, mas quem já lá entrou diz que tem mais de 100 casas, numeradas à mão, arrumadas num labirinto de ruas estreitas.

A poucos metros deste bairro, funciona o Centro Comunitário da Misericórdia do Seixal, que presta apoio diário a crianças (30), jovens (50) e adultos (mais de 120) num espaço que ganhou mais um edifício, no final de 2019, com uma verba (70 mil euros) e terreno cedidos pela autarquia. O centro fica num enclave entre a cidade e o campo, a clandestinidade e os prédios mais recentes, à distância de uma estrada apenas. Em poucos minutos, a paisagem de prédios e automóveis em circulação transforma-se numa zona ampla, com hortas familiares e cabras que se passeiam livremente.

A visita começa pelo novo edifício, que acolhe, desde novembro de 2019, os gabinetes de ação social e psicologia, os espaços de atendimento (individual e familiar) e de acompanhamento de beneficiários de rendimento social de inserção. Estamos nos bastidores da intervenção iniciada em 1996, com uma creche familiar para as crianças do bairro. Este apoio é alargado aos jovens, em 1998, com a criação de um espaço para ocupação de tempos livres e em 2005 instalam no mesmo local um centro lúdico para crianças dos 3 aos 5 anos.

As atividades de animação (capoeira, judo, dança) e apoio ao estudo são dinamizadas num edifício pré-fabricado que recebe os jovens depois da escola em duas salas equipadas com computadores, material escolar, jogos e mesa de matraquilhos. O espaço não é amplo, mas está organizado em zonas distintas de lazer e trabalho.

Hoje, os estudantes não têm trabalhos de casa por isso a tarde é dedicada ao exercício físico. Pelos sorrisos e velocidade com que trocam de roupa, percebemos que a atividade reúne consenso entre todos. Em poucos minutos, a sala é convertida num dojo (espaço onde se praticam artes marciais), com colchões e um tapete onde se lê Misericórdia do Seixal.

O mestre de judo dá início à aula com uma ordem e uma vénia. Todos os preceitos são cumpridos a rigor para transmitir os ensinamentos desta arte marcial. De seguida, trocam as técnicas de projeção pelos movimentos ritmados da capoeira, samba e danças indígenas, sob o olhar atento do animador Paulo Gonçalves. Alguns dos instrumentos de percussão que ajudam a sintonizar o passo foram construídos na oficina de carpintaria com a ajuda dos mais novos. “Fazemos o berimbau com paus que apanhamos e cabaças plantadas”.

Entre a disciplina e a brincadeira, os animadores e técnicos do centro comunitário procuram transmitir valores e ferramentas para a resolução de conflitos que facilitam a vivência em sociedade. A este nível, a psicopedagoga Sofia Góis destaca as dinâmicas de grupo realizadas mensalmente para a promoção da empatia, respeito-mútuo e criação de laços e, no caso dos jovens, para discussão de temas como a violência, igualdade de género e sexualidade.

O aumento das taxas de aproveitamento escolar, que em 2019 foi de 95%, e do número de jovens que conclui o ensino secundário e ensino superior (apesar de residual) são resultado deste acompanhamento diário, embora nem sempre são visíveis no momento. Em muitos casos, a equipa constata os benefícios da intervenção anos mais tarde, quando reencontra os adultos que um dia brincaram no jardim do centro comunitário.

“Há um rapaz que me deixa especialmente orgulhosa e que todos os anos nos visita no Natal. O Milton tem quatro irmãos e os miúdos cresceram a tomar conta uns dos outros porque a mãe precisava de cuidados de saúde. Hoje, todos trabalham e têm as suas famílias”, recorda Sofia Góis, uma das primeiras técnicas a chegar ao centro, em 2001.

Outros miúdos da mesma geração não seguiram as pisadas de Milton e foram presos. Mas os técnicos não desistem de lutar, mesmo que o contexto familiar seja marcado pelo desemprego, alcoolismo ou delinquência. “Eles dizem que somos chatos, mas esse é o nosso papel. Temos de tentar, mesmo que se dê um passo em frente e dois para trás. Uns sabem aproveitar e fazer o seu caminho, outros não”, reflete num rasgo de esperança.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas‌