Era um dia atípico de fevereiro, para os lados das Terras de Barroso, no distrito de Vila Real. Os raios de sol de inverno entravam pela vila de Boticas logo pela manhã, contrastando com as semanas que tinham passado, onde o frio e a neve batiam à porta das casas de pedra rústica, que pintam grande parte da paisagem de uma região resistente às transformações da globalização, o que faz dela um território tão especial e acolhedor.

Por volta das dez horas da manhã, à porta da Santa Casa da Misericórdia de Boticas já se sentia o rodopio de carros e carrinhas e o cheiro de um almoço quente pronto a ser dividido pelos termos que iriam ser distribuídos pelas 32 aldeias onde o serviço de apoio ao domiciliário (SAD) da Misericórdia marca presença diariamente. De referir que o concelho de Boticas é constituído por um total de 52 aldeias.

Dezenas de colaboradores entram nas viaturas, como fazem nos restantes dias do ano, e partem rumo a cada um dos utentes, a quem levam uma refeição quente, um sorriso e uma palavra amiga.

No total, a Misericórdia de Boticas percorre todos os dias 278 quilómetros para chegar a todas as aldeias, muitas delas isoladas e distanciadas da sede de concelho. Em termos comparativos, a distância percorrida pelo SAD é equivalente a uma viagem de Boticas até à Covilhã, por exemplo.

Entre os vários destinos e carrinhas espalhadas pelo concelho a cumprirem a mesma missão, naquela manhã optamos por acompanhar Olga Alves e Susana Gomes, colaboradoras do SAD e dois rostos bem conhecidos para os idosos da freguesia de Dornelas, onde um pequeno vale dá abrigo às aldeias.

A 22 quilómetros da sede de concelho e após 30 minutos de viagem, chegamos à aldeia da Gestosa. Ali somos confrontados com um silêncio indescritível, seguramente difícil de encontrar em qualquer outro ponto do país.

As ruas desertas já não testemunham as algazarras das crianças. Só se ouve o vento e a água a escorrer pelas pedras, depois das chuvas das semanas anteriores. Por entre carreiros finos do chão de pedra que o tempo gastou, reluz o sol daquele dia de fevereiro e um cão descansa sem grandes preocupações, quase como se fosse o guardião da aldeia.

Dentro da carrinha da Misericórdia de Boticas seguimos por ruas e becos e avistamos, ao longe, a dona Albina, uma das sete habitantes da aldeia e utente do SAD.

“Bom dia, meninas. Hoje trazem companhia?”, perguntava Albina na plenitude dos seus 83 anos, depois de arrumar uma lenha no campo. Depois de dois dedos de conversa, os rostos desconhecidos daquela manhã rapidamente passaram a integrar a conversa que Albina dominava.

“Já não se vê ninguém aqui pelo povo, mas temos de andar. Aquilo que me fazia melhor era estar uma horita à conversa por telefone com as minhas filhas, mas agora já nem isso tenho. Estou desde o dia 8 de janeiro sem telefone e ninguém vem cá arranjar-me isto. Assim ainda fico mais isolada”, contava a utente.

Por entre as conversas sobre o fraco serviço de telecomunicações, que aumentam o isolamento de muitos dos idosos da região, Albina perguntava a Olga e a Susana como passavam “desde ontem”.

“Estas duas meninas são como família. Já sei as horas a que elas chegam e estou sempre aqui para as ver. É uma grande alegria”, confessou.

Depois de um “até amanhã se Deus quiser”, o caminho de Olga e Susana tinha de seguir, já que se aproximava a hora de almoço.

Chegadas à aldeia de Antigo de Dornelas, onde já se sentia mais movimento, dirigimo-nos até casa do Jorge, também utente do serviço. A chave estava na porta, como se fosse um convite para entrar.

“O Jorge tem sempre a chave na porta para nós entrarmos e deixarmos a comida em cima da mesa, caso ele não esteja aqui. Mas também nos deu uma chave da casa dele e andamos sempre com ela na carrinha”, contaram as colaboradoras.

Com o passar dos tempos, a relação entre os utentes e os rostos do SAD da Misericórdia de Boticas torna-se quase familiar e a confiança de ambas as partes é indiscutível.

Ao fundo da rua vinha Jorge, com um sorriso no rosto e um gracejo prestes a ser lançado. “Estive ali a ajudar um vizinho a arranjar uma motosserra, mas ainda bem que entraram, a chave já estava na porta para isso”.

Não foram necessárias grandes apresentações para Jorge debitar opinião sobre os mais variados temas. Falava da aldeia com a mesma intimidade de quem faz a sua própria crónica pessoal, a acompanhar a história da freguesia com um jornal antigo.

Depois de uma lição de história, o assunto rapidamente saltou para a culinária. “Ao domingo não me trazem a comida, mas também não me queixo. Assim é maneira de não desaprender de cozinhar, senão ainda me esqueço de como se usa uma panela”, rematou Jorge.

Feitas as despedidas até ao dia seguinte, foi a vez de a carrinha subir até mais uma paragem. Desta vez fomos até à localidade de Vila Pequena, que, em relação a muitas das aldeias da região do Barroso, não faz jus ao próprio nome.

Em Vila Pequena somos novamente confrontados pelas casas de pedra rústica, as estradas em paralelo e a beleza dos lameiros verdejantes, que servem de alimento aos animais, nomeadamente às vacas barrosãs, uma raça autóctone de bovinos da região que serve de sustento, ainda hoje, a muita da população daquelas localidades.

Estacionadas em frente a uma pequena casa, antes de subirmos, somos rapidamente alertadas pelas colaboradoras da Misericórdia. “Esta é a senhora mais asseada e organizada que temos. Tem uma casa muito pequena, mas tudo no sítio”.

E assim era. Ao entrarmos em casa da dona Laura, o curto espaço daquela sala era rapidamente esquecido, dada a organização e arrumação que pairava naquele lar.

“Moro nesta casa pequena por opção própria. Criei aqui todos os meus filhos e fiquei viúva muito cedo”, disse Laura com o rosto tímido que já contempla os seus 95 anos, longe de parecerem reais.

Enquanto Susana abria o termo com a refeição do dia, constituída por abrótea com arroz de legumes e uma sopa para complementar, Laura esperava que Olga também entrasse pela casa, para lhe “pedir um favor”.

“Ajuda-me aqui no telefone, não sei o que lhe aconteceu que não toca com som. Estava aqui sentada à vossa espera para vos pedir isso”, confessou.

Não é, nem nunca será, somente a entrega rápida de uma refeição ou uma limpeza à habitação. São os abraços, os sorrisos, as piadas e as trocas de favores que se pedem de igual modo a um familiar ou a um amigo. É a relação de proximidade e os laços que se geram entre os utentes e os colaboradores da Misericórdia de Boticas.

“Para muitos dos nossos utentes o único contacto com outras pessoas é precisamente com as funcionárias do SAD”. Quem o diz é Cecília Freitas, diretora do serviço de apoio domiciliário da Misericórdia de Boticas, relembrando que um dos objetivos da instituição é permitir que os utentes continuem a viver na sua habitação e no seu ambiente familiar, “facilitando e encorajando a sua autonomia no modo normal de vida, em condições de segurança e com dignidade”.

Voz das Misericórdias, Daniela Parente