Mais de cem bonecas de trapos ganharam vida a partir de pedaços de lã, botões soltos e restos de tecido esquecidos no fundo da gaveta. Os seus criadores são os utentes dos centros de dia e de convívio da Misericórdia de Cascais.

“Jovens há mais tempo”, como lhes chamou carinhosamente o presidente da autarquia, Carlos Carreira, ou “militantes da sabedoria da vida”, aos olhos da provedora Isabel Miguéns, os idosos desfilaram com as suas obras-primas, no pátio da sede da Santa Casa, dando provas de sabedoria, competência e vitalidade.  

“Isto é a demonstração de que o trabalho com os mais velhos, desde que feito com sabedoria e afeto, não só dá alma aos trapos como também devolve cidadania aos artífices”, constatou a provedora da Misericórdia de Cascais, na abertura da exposição “Nem os Trapos são Velhos” que decorreu no dia 25 de outubro.

O pátio no centro da vila foi pequeno para acolher todos aqueles que acompanham de perto o trabalho desenvolvido pela instituição. Não é todos os dias que se veem desfilar, na passadeira vermelha, bonecas de trapos e de carne e osso. 

Santos populares, agricultores, pescadores e outras profissões do mundo rural e urbano foram algumas das figuras que brotaram do imaginário coletivo dos idosos, nas semanas que antecederam o desfile. O método de trabalho foi diferente em cada equipamento, mas envolveu a maior parte dos utentes na confeção dos bonecos e figurinos. 

Para a maior parte deles, não foi o primeiro contacto com as linhas e agulhas. Por isso, bastou recordar saberes transmitidos pelos pais e avós. “Quando era miúda fazia muita coisa. Não tínhamos dinheiro. Arranjávamos uma meia, cosíamos a cabeça, fazíamos as pernas com um trapo velho e tínhamos as nossas bonecas”, lembra Olga Francisco, utente do centro de dia da Torre, responsável pelo guarda-roupa de três bonecas (saia escocesa, macacão e vestido). 

De forma geral, os afetos foram a principal fonte de inspiração, motivando a criação de figuras evocativas da infância e outros momentos marcantes. O pescador “Ti Toino” nasceu a partir da memória do marido (já falecido) de Maria de Lurdes Jorge, utente do centro de dia de São Miguel, enquanto a “Claudinha” foi dedicada à neta de Consuelo Camões, utente do centro de convívio Vinhais. Esta última tem o tamanho de uma criança pequena e é tratada como tal. “Primeiro fiz as pernas, que enchi com esponja e lã do meu colchão antigo (risos). Depois fiz um casaco, a saia e o gorrinho”, conta a última, enquanto aconchega a boneca num banco. 

Entre os mais de 80 artesãos estava apenas um homem, que frequenta o centro de convívio Natael Rianço. Pompílio Rosa faz barcos à vela nos tempos livres e já construiu um carrinho em madeira para a bisneta. Mas esta é a sua estreia na produção de bonecas. Adaptou dois tubos em ferro para a estrutura do corpo e transformou a manga de uma camisa num elegante vestido às riscas. “Vi uma mesa cheia de bonecas no centro e fui para casa a pensar que também podia fazer uma daquelas…”, contou orgulhoso.

Para a responsável pelo departamento de terceira idade da Santa Casa, Áurea Lopes, a mais-valia deste tipo de atividades reside no “trabalho em equipa e na oportunidade de recordar a infância. Eu estive apenas a orientá-los. O saber está dentro deles”. 

Veja mais fotografias da exposição na seção Galeria.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas