A Misericórdia de Aljustrel editou um CD onde as crianças da creche se juntam aos idosos do lar a cantar “a moda”.

O cante está no sangue dos alentejanos. É-lhes tão natural como beber água da bica ou comer uma açorda de alho. Dos trabalhos no campo sob o sol de agosto às noites longas na taberna, cantar a “moda” era quase uma obrigação para gerações de alentejanos. Uma tradição imemorial que acabou classificada, em 2014, como Património Imaterial da Humanidade pela Unesco e que a Santa Casa da Misericórdia de Aljustrel, no distrito de Beja, pretende preservar para a posteridade com a recente edição de um CD onde coloca miúdos e graúdos a cantar o Alentejo.

“Cante sem idade” foi editado no passado mês de junho e junta em disco as vozes das crianças do Grupo Coral Infantil do Infantário “A Borboleta” às do Grupo Coral do lar de terceira idade da instituição, sendo, sobretudo, uma verdadeira experiência intergeracional.

“As atividades intergeracionais constituem sempre um enorme potencial de estimulação ao nível da aprendizagem, partilha de saberes e reforço de laços sociais e afetivos, o que é benéfico para ambas as faixas etárias a que prestamos serviço e apoio. Transmite-se saber, identidade e promove-se uma cultura de respeito e de afeto”, nota o provedor da Misericórdia de Aljustrel.

Além do mais, continua Manuel Frederico, “a transmissão da nossa cultura e identidade é para nós ponto de honra e todos – utentes, funcionários, direção e população em geral – beneficiamos com este tipo de iniciativa. É o nosso património que fica registado, é a tradição oral que ganha e se perpetua. As mais-valias são muitas, mas chega-nos a certeza de que proporcionámos um momento de felicidade a crianças e idosos”.

Foi no final de 2016 que surgiu na instituição a ideia de se fazer um CD de cante alentejano. À data, a Misericórdia de Aljustrel editou o livro “(Com)Sentimentos”, fruto de uma recolha da cultura tradicional oral do Alentejo, e na mesma altura nasceu no lar um grupo coral composto por utentes. Desde logo ficou assente que a gravação de um disco era o passo seguinte, com as receitas do livro a servirem para esse intento.

“Sendo o cante alentejano um património a preservar e a transmitir, reconhecido inclusive como bem imaterial da Humanidade, entendemos que era uma boa oportunidade para, através dos mais idosos, o podermos transmitir às gerações mais novas que frequentam o nosso infantário”, justifica Manuel Frederico.
Por isso mesmo, aos membros do grupo coral do lar acabaram por juntar-se as crianças do infantário “A Borboleta”, também da Misericórdia de Aljustrel, num trabalho coordenado pela professora de música Catarina Claro e pelas técnicas Filipa Santos e Helena Godinho.

“O processo de gravação correu bastante bem. A interação entre idosos e crianças foi bastante positiva e benéfica. Por um lado, os idosos mostraram-se sempre entusiasmados e, por vezes, emocionados com a facilidade com que os mais jovens cantavam e aprendiam as modas. Por outro lado, viveram-se momentos de respeito e adoração por parte das crianças face aos idosos que, naturalmente, tiveram oportunidade de mostrar um pouco da sua sabedoria e do seu passado em relação ao cante alentejano”, lembra o provedor, explicando que as modas gravadas obedeceram a um critério. “Houve um cuidado em construir uma sequência de canções que englobasse o mais tradicional e as canções ligadas à ‘vila mineira’ [Aljustrel]”, explica Manuel Frederico.

O resultado final das gravações foi “Cante sem idade”, um CD apresentado publicamente no passado mês de junho e que desde então tem “colecionado” elogios. “A reação não poderia ter sido melhor”, frisa Manuel Frederico, lembrando com emoção o dia da apresentação. “O auditório da Biblioteca Municipal de Aljustrel encheu-se de gente e crianças e idosos puderam, com toda a mestria, mostrar o seu trabalho. Foi um momento que foi muito sentido por todos”.

O CD está disponível para venda em todos os serviços da Misericórdia de Aljustrel e pode, segundo o seu provedor, ser o ponto de partida para novas iniciativas do género. “Este projeto pode sempre ter continuidade”, garante. “A tradição oral deve continuar a ser recolhida, o cante alentejano deve continuar a ser partilhado e as atuações podem e devem repetir-se tal como já está previsto. Depois, a este projeto podem ainda associar-se outros de cariz tradicional e que estejam associados à nossa identidade cultural, como por exemplo um livro infantil ou um com receitas tradicionais antigas”, conclui.

Carlos Pinto, Voz das Misericórdias