Contar a história local através de receitas é o objetivo da parceria entre a Misericórdia de Almada e a empresa de turismo social Varina

Na margem sul do Tejo, a paisagem ribeirinha da Trafaria guarda memórias de outros tempos, ligados à origem da vila piscatória, que foi estância balnear da burguesia lisboeta no início do século XX. No local onde foi inaugurada pela rainha D. Amélia a primeira colónia de férias para crianças, repousa hoje um cemitério de barcos e as ruínas de antigas fábricas de conservas e explosivos, que empregaram centenas de pessoas até 1970. Contar a história deste território e das suas gentes, através de receitas de pratos do mar, é o objetivo de uma parceria nascida no início deste ano entre a Misericórdia de Almada e a empresa de turismo social “Varina”.

As utentes do Centro Social da Trafaria (CST), da Misericórdia de Almada, são as protagonistas deste projeto que nos guia pelas tradições da localidade. Libânia Anjos, Vicência Lopes e Maria Domingues Lopes são as “avós do mar residentes”, desde fevereiro de 2019, o que significa que estão no comando dos tachos nos dias em que o CST recebe a visita dos turistas da “Varina”. Mais do que uma lição de culinária, esta experiência de proximidade, à volta da mesa, assenta na “valorização dos saberes, tradições e pessoas da terra”, como nos explica de início a diretora do centro, Sofia Valério.

Começamos o passeio junto ao rio, na entrada da estação fluvial, e embrenhamo-nos nas ruas estreitas da vila em direção ao mercado municipal, onde locais e visitantes se abastecem de peixe fresco, frutas e legumes.

Espera-nos no andar de cima uma figura carismática na vila, Carlos Alberto Santos, antigo pescador recreativo, apaixonado pelas lides do mar desde a infância. O “capitão”, alcunha de sempre, não hesita quando lhe perguntam qual é a terra mais bonita de Portugal: Trafaria.

Daqui até ao Bairro Madame Faber são dois passos ao ritmo da conversa da guia Joana Paula. A paixão com que fala da terra onde os pais se conheceram é contagiante. “Sabem quem era a varina?”, pergunta. “Era a mulher de antigamente, que vendia peixe num enorme cesto que carregava na cabeça. Hoje, em vez de peixe, vendemos a cultura piscatória”. O projeto de turismo de base comunitária, iniciado em 2017, foi a forma que encontrou para preservar as tradições locais e empoderar as pessoas que aqui moram.

Os principais beneficiários do projeto “Avós do mar” são os utentes que vivem, na maioria dos casos, isolados e vêm afugentar a solidão no Centro Social da Trafaria. “Não sou capaz de estar quieta, gosto muito da convivência”, comenta Libânia Anjos, guardiã de uma das receitas que colocamos em prática no dia em que o VM se junta à experiência gastronómica. A ementa é constituída por pataniscas de bacalhau, arroz de feijão com couve galega e aletria.

Antes de nos aventurarmos na cozinha, a guia e mentora da “Varina” faz um alerta aos visitantes: “As nossas grannies (avós em inglês) adoram receber visitas, mas já sabem como são as avós, nós tentamos ajudá-las na cozinha e elas querem fazer tudo”.

As mestres da culinária aprenderam, entretanto, a delegar tarefas e colocam rapidamente todos os participantes a trabalhar, sob a sua supervisão. “Podes cortar os alhos e cebolas”, pede Libânia. Do outro lado, junto ao fogão industrial, Vicência Lopes pede ao mais jovem membro do grupo, Jude, que mexa o preparado de leite com canela, limão e manteiga. “Estas velhas são mandonas”, brinca a voluntária Maria dos Anjos, 86 anos, avó do mar emprestada.

Hoje é o aniversário de Jude por isso o jovem canadiano tem direito a escrever o seu nome na aletria e recebe de prenda um enorme pedaço de bolo de chocolate. Além do aniversário, hoje é um dia excecional porque dos 8 visitantes (EUA, Canadá e Portugal), mais de metade entende português.

Na hora de nos sentarmos à mesa, para degustar o repasto preparado a 20 mãos, os tradutores são dispensados e as palavras trocadas por “hmmmm” de satisfação. A panela fumegante de arroz com feijão é destapada e os olhos brilham em volta da mesa. “Aproveitem hoje, que amanhã não há mais”, brinca Maria dos Anjos. “Não há? E eu a pensar que podia cá voltar dez dias seguidos”, remata um dos açorianos, enquanto repete a dose de pataniscas.

A experiência tem sido muito bem acolhida pelos idosos e também pelas suas famílias, conta a diretora técnica do CST. “Os nossos utentes percebem que o seu património histórico pode ser importante para as pessoas de fora”, refere Sofia Valério, destacando ainda que “haver pessoas que vêm de outros países e se interessam por aquilo que eles têm a dizer é fantástico”.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas