Na Amadora, as ajudantes domiciliárias da Misericórdia representam um apoio vital para suportar as limitações do corpo e mente

O despertador toca quase todos os dias às sete da manhã na casa de Telma Monteiro. O turno começa às oito e os idosos aguardam a chegada da equipa de serviço de apoio domiciliário (SAD) da Misericórdia da Amadora. A ajudante familiar de SAD conhece todos pelo nome e renova-se em cada visita, com a gratidão que encontra nos olhares devolvidos. Na primeira reportagem presencial desta jornalista que vos escreve, namoramos à janela com todos os que se cruzam no nosso caminho, Fátima, António, Laurinda e Inês (utentes), para não colocar ninguém em risco, equipa, utentes e redação. Siga o nosso encalço com a distância de segurança, que nos separa do vírus, sem nos tornar imunes aos afetos.

Os procedimentos de desinfeção e uso de equipamentos de proteção individual são cumpridos quase de olhos fechados por Telma, entre cada visita. Fazem parte das novas rotinas e entraram pela sua vida adentro sem que pudesse ripostar. Os contactos sociais estão reduzidos ao indispensável e no primeiro mês de pandemia, em que as dúvidas superaram as certezas, não se aproximou da filha de oito anos. “Custou muito, mas tive medo porque ela tem asma. Os olhos ficaram com lágrimas”, recorda a cabo-verdiana de 35 anos.

Apesar do medo, ficar em casa nunca foi uma opção. “Ela precisa de mim, mas eles [idosos] ainda precisam mais. Para alguns, somos as únicas pessoas que os visitam”, reconhece. Muitos não se conseguem levantar sozinhos, tomar banho, vestir uma roupa limpa ou preparar o pequeno almoço. Por isso, o dia só começa depois da chegada de Telma e das colegas.

Fátima Aguiar, a primeira pessoa que visitamos (à janela), tem problemas de visão e mora num prédio sem elevador. Costuma levantar-se cedo e aguarda os olhos e mãos de Telma para terminar os preparativos da manhã. “Está sempre bem-disposta e tenta ajudar no que pode. É vaidosa, faz combinações bonitas e tem de ter sempre os seus brincos”, revela a ajudante familiar.

Ouvem-se vozes no primeiro andar, mas as cortinas não deixam entrever o que decorre no primeiro plano de ação. Mais uns minutos até emergir da penumbra um vulto elegante, que sabemos pertencer à idosa de 82 anos. Os cuidados prestados fazem sobressair a beleza de outros tempos.

Vamos buscar reforços ao CASSA - Centro de Atendimento e Serviço Social da Misericórdia da Amadora, o “quartel general” das ajudantes de SAD, antes de seguir para a casa de Conceição. A próxima utente é dependente e exige mais um par de braços. Não se levanta, não caminha e usa os braços com dificuldade. A dupla de colegas não esmorece e empenha-se na melhoria da qualidade de vida da idosa, estimulando a sua autonomia em pequenas tarefas como segurar uma colher. “Tentamos estimular para que mantenha a autonomia mínima”, explica.

Neste concelho, densamente povoado e envelhecido, as 40 ajudantes domiciliárias, distribuídas por quatro núcleos de SAD (Centro, Norte, Moinhos da Funcheira e Sul), são a retaguarda familiar, que nem sempre existe, e o apoio vital para suportar as limitações do corpo e mente.

Numa fase particularmente exigente, para colaboradoras e utentes, foi necessário adaptar os serviços e reorganizar as equipas, para reduzir a rotatividade e a duração das visitas. Outro aspeto fundamental, destacado pela coordenadora de SAD, Alexandra Andrade, foi “investir na motivação e comunicação com as equipas, em reuniões online ou grupos de whatsapp, para sensibilizar e perceber o estado emocional das pessoas. Houve um reforço positivo para sentirem que não estavam sozinhas. Muitas têm filhos e usam transportes públicos”.

Telma Monteiro utiliza viatura própria, mas no centro da Amadora desloca-se sobretudo a pé, devido à proximidade entre habitações. Acompanhamo-lo neste trajeto e sentimos a dinâmica dos seus habitantes entre idas ao café, compras no comércio local e passeios matinais.

Num largo mais recatado, cumprimenta-nos, da sua janela, Laurinda Gomes, 76 anos. O utente nesta casa é o marido, António Marques, diagnosticado com Alzheimer. “Dão-lhe banho, vestem-no, põem cremes, fazem a barba, com todo o carinho, ajudam em tudo”, confidencia.

Nas horas que se seguem, Laurinda assegura o papel de cuidadora a tempo inteiro, até a filha chegar. O casal já não troca palavras, mas Laurinda “sabe tudo o que ele quer” e sente que “ele fica todo contente” quando se deita ao seu lado, como faz há 57 anos. “A vida é triste, mas temos de nos conformar com o que Deus nos deu. Enquanto puder vamos ficar os dois”.

A manhã termina com a visita a uma conterrânea de Telma, que também mora no rés-do-chão e por isso nos brinda com outro “namoro à janela”, receitas cabo-verdianas e um temperamento suave como as noites de verão. “O bom deste trabalho é que a maioria das pessoas reconhece o carinho e fica melhor com a nossa presença. E nós arranjamos sempre energia para recomeçar tudo de novo”, admite a nossa protagonista. Amanhã é um novo dia.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas