Através de rituais fúnebres as Santas Casas dão cumprimento às obras de misericórdia “enterrar os mortos” e “rezar pelos vivos e defuntos”

“Virá tempo, e não será muito tarde, em que nós entremos no número de todos os Santos e também será nosso este dia. Agora celebramos e depois seremos celebrados”. Assim proferiu o padre António Vieira, numa celebração realizada no dia de Todos-os-Santos, em 1644. Mais de três séculos depois, a celebração de rituais fúnebres, associados à assistência a vivos e mortos, ainda é prática frequente nalgumas Misericórdias, dando cumprimento à sétima obra de misericórdia corporal e espiritual: “enterrar os mortos” e “rezar pelos vivos e defuntos”. 

Fazendo jus a uma tradição que remonta à época moderna, a União das Misericórdias Portuguesas (UMP) lembrou as suas associadas da importância de “uma das datas mais simbólicas ao longo dos séculos” e exortou as instituições a promover cortejos de visita aos cemitérios, com a presença da bandeira e de irmãos com as insígnias. Em pleno Ano Europeu do Património Cultural, a UMP recordou ainda, no ofício enviado às mesas administrativas, que a recuperação desta “manifestação pública de fé, tradição e cultura” permite afirmar a identidade, valores e “missão que nos está confiada”. 

Recuando no tempo, percebemos que esta homenagem aos defuntos tem raízes numa prática de assistência espiritual, comum a outras confrarias, ordens e instituições, que conferia à morte e à procura da salvação da alma um lugar central na vida de todos os homens. De tal forma, que, como relata Marta Lobo de Araújo, nalgumas Misericórdias se dizia que em seiscentos “a assistência fúnebre constituía uma das principais obras de misericórdia”.

No artigo “O mundo dos mortos no quotidiano dos vivos”, a historiadora refere que todas as Santas Casas celebravam os mortos com uma festa fúnebre, nos dias 1 e 2 de novembro, que agregava a comunidade em torno dos defuntos. “Eram dias grandes no calendário litúrgico, em que todos se reuniam nas igrejas e nos cemitérios para honrar os santos e todos os mortos”. 

Nestes dias, era celebrada missa com sermão e, após esta, era realizada uma romaria ao cemitério para rezar pelos mortos e aspergir água benta sobre as sepulturas. Em muitas instituições, este período era ainda associado à caridade, sendo marcado pela distribuição de alimentos e esmolas aos pobres, enquanto manifestação em “honra das almas idas”. As esmolas alargavam-se, por vezes, aos presos, sendo prática o envio de um jantar nesta data.

Hoje, as celebrações persistem nalgumas localidades, mas são menos frequentes. Em Ponte da Barca, a irmandade participa habitualmente na eucaristia, na igreja da instituição, e segue em procissão até ao cemitério “num ato de sufrágio em memória de todos os irmãos e fiéis defuntos da comunidade”. Em nota informativa, a Santa Casa revela tratar-se de “um dos atos processionais mais importantes do seu compromisso”, sendo, como tal, cumprido todos os anos. 

Fundão e Braga são outras das instituições que cumprem o disposto no seu compromisso, realizando missa e romaria ao cemitério. A Irmandade da Misericórdia e de São Roque de Lisboa vai mais longe e, além de celebrar missa pelos vivos e defuntos (beneméritos, dirigentes, trabalhadores, reformados e voluntários da irmandade e Santa Casa de Lisboa), realiza os funerais de pessoas que morrem sós, sem família, nos hospitais ou na rua. 

Na diáspora, há também Misericórdias que cumprem esta missão, acompanhando os irmãos defuntos e compatriotas que morrem sem ninguém. É o caso da irmandade de Paris, fundada em 1994, que assegura a “sepultura e exéquias condignas dos compatriotas que falecem abandonados, evitando que sejam enterrados, anonimamente, numa vala comum”, lê-se na página oficial da instituição (http://www.misericordiadeparis.org/). Para o efeito, encetaram contactos com câmaras municipais da região parisiense para obter terreno num cemitério, tendo realizado desde 1999 mais de 16 funerais. Uma atividade “dispendiosa”, mas que consideram imprescindível, uma “obrigação não somente religiosa, mas também moral”. 

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas

Legenda: Painel de azulejos do cemitério da Santa Casa da Misericórdia de Setúbal faz referência aos rituais fúnebres levados a cabo pelas Misericórdias.