Manuel Casimiro, 87 anos, Maria Luísa Estevão, 84, e Francisco Pereira, 88. Nos três utentes do Lar da Santa Casa da Misericórdia de Grândola subsistem fragmentos bem vivos de memória do 25 de Abril de 1974, como se tivesse sido a mais recente página virada de uma vida recapitulada.

A rádio e a televisão levaram os acontecimentos de Lisboa ao concelho de Grândola, vila que viria a batizar uma das senhas do movimento dos capitães que levou à instauração da democracia e à queda do Estado Novo.

As reminiscências desse dia-noite perduram no ouvido de Manuel Casimiro. “Andava atrás do gado e lembro-me de ouvir no rádio”, recordou o pastor de Pedrões, Canal Caveira, que acordava “às seis da manhã” e saía de casa acompanhado do cão. “Era o vira-tudo. Mandava fazer e ele virava tudo”, sorriu.

A história detonada na capital demorou uns dias a ser percecionada no Alentejo e em casa de Manuel Casimiro. “A minha mulher também não percebia nada daquilo, estávamos no monte, com três filhas pequeninas”, relembrou.

“Tinha uma televisãozinha, estava sempre acesa, acompanhava as notícias, mas a gente não percebia o que estava a passar. Só falávamos que tinha havido um golpe de Estado”, assumiu. A poeira assentou e “ao fim de uns dias começamos a ver o que se passava e toda a gente falava, é pá, isto dá guerra”, exclamou.

Não deu. Manuel Casimiro faz contas de cabeça para acertar na idade à altura dos acontecimentos. “Tenho 87, faço 88 no dia 10 de julho, é tirar 50 anos”, solicitou o “número 11” de 12 irmãos, nascido em Monte Novo e que abraçou uma novidade de Abril. “Votei nas primeiras eleições e daí para cá tenho votado sempre”, sublinhou o residente no lar “há três anos e meio”.

‘Só se via gente, um alvoroço’

“Tenho 84 anos, nascida a 27 de março de 1940, para os lados de Santo André velho. Já passei uma boa história e bem complicada”, resumiu Maria Luísa Estevão.

Na agricultura “até os 31 anos” nas “lavras dos Espíritos Santos”, onde “plantava e aceifava arroz, debulhava-lo e levava-lo à eira”, numa época em que as crianças eram criadas “descalças, rotas e nuas”, descreveu. “Naquele tempo era assim, o principal era ter um trabalhinho para ganhar qualquer coisa para a sopa”, assumiu.

Deixou essa vida para trás. “Armei-me em comerciante e fui para o negócio”, atestou. “Na altura, quando foi o 25 de Abril, tinha uma taberna, no Brejo da Carregueira”, recordou, “comprada em 1971”, particularizou. Fixa-se na data. “Estava a dormir e no dia seguinte de manhã, na televisão só se via gente, um alvoroço, uns em cima uns dos outros, com cravos na mão e numa espingarda, estava lá o Salgueiro Maia, que me lembro bem e o Otelo”, identificou.

O ecrã mágico atraía o povo à taberna. “Iam todos os dias para ver e falar, principalmente a malta mais velha”. As dúvidas persistiam na cabeça de Maria Luísa. “Não sabíamos bem o que estava a passar. Vivíamos num meio atrasado, não sabíamos se seria melhor ou pior. Para pior não foi”, assegurou.

“As mães naquele tempo tinham muito amor com filhos. O que vai acontecer agora? Tenho a moça pequena, será que vêm também para aí com as espingardas”, pensou esta utente “desde julho”.

Não vieram. E um ano depois veio o primeiro ato eleitoral. “Lembro-me muito bem das primeiras eleições. Votei e aquilo foi uma loucura, era tanta gente para votar. Fiz um risco e já nem me lembro em quem votei, não percebia nada de política, nem se falava de política, como é que a gente sabia?”, interrogou-se.

 ‘Derrubaram o governo’

“No 25 de Abril estava em casa. De manhã, a minha senhora foi à mercearia em Canal Caveira e disse-me que tinha havido um golpe de Estado”, confessou Francisco Pereira, 88 anos. “Ela não sabia e eu também não. Palpitei, se calhar derrubaram o Governo”, profetizou.

O trabalho nos caminhos-de-ferro, em Canal Caveira, abriu-lhe pistas ao sucedido. “Mal entrei ao serviço falou-se logo nisso. Apareceram lá dois tipos, provavelmente pertenciam à CP, passaram por lá, a vigiar e a falar”, asseverou.

“A minha mulher tinha dito aquilo do golpe de Estado. Não sabíamos o que era. E continuámos a vida com a revolução, não é?”, continuou Francisco Pereira, cujas memórias da época recuperam o primeiro voto. “Tinha trinta e tal anos quando votei, em Canal Caveira. E voto desde sempre”, sentenciou o residente no lar da Misericórdia de Grândola “há sete anos”.

A Horácio Pereira, provedor da Misericórdia de Grândola, a notícia da Revolução dos Cravos chegou pela voz de espanto de outros, de manhã cedo, mas poderia ter sido anunciado horas antes, quase em tempo real, por ondas hertzianas.

“Acompanhei o meu pai a uma feira que se fazia anualmente, no dia 25 de abril, em Alter do Chão. Fomos às três ou quatro da manhã e nunca ligámos o rádio. Quando chegámos, não se falava de outra coisa senão da vila e da música Grândola Vila Morena”, lembrou. “Foi aí que apercebemos que tinha havido uma revolução”, resumiu Horácio Carvalho Pereira.

Voz das Misericórdias, Miguel Morgado