Apartamentos na cidade ou moradias em vilas no interior do país são diferentes soluções para cumprir o mesmo objetivo: dar casa às famílias portuguesas. O acesso à habitação em Portugal é tema recorrente de discussão, reflexão e, mais recentemente, de legislação, com a publicação do diploma que estabelece a primeira Lei de Bases da Habitação do país, em 2019. O VM decidiu juntar-se ao debate dando a conhecer a oferta disponibilizada por algumas Misericórdias.

O acesso à habitação não é um direito adquirido em Portugal, como comprova o relatório da Amnistia Internacional sobre direitos humanos na Europa em 2019, divulgado a 17 de abril. No documento é referido que a Lei de Bases reconheceu o direito à habitação, mas alerta que os mais vulneráveis continuam a lutar para ter acesso a condições adequadas de habitação e que os moradores de bairros informais vivem com receio que as suas casas sejam demolidas.

Um desses bairros chegou ao grande ecrã, em 2016, numa produção do realizador Marco Martins (“São Jorge”), que mostrou então uma realidade dura, a meia hora da capital, com torres em tijolo e betão, em risco de ruir. O cenário de apocalipse do Bairro da Jamaica, como é conhecido, remonta à década de 1980, período em que a construção civil dispara no Seixal. Mas os prédios nunca foram concluídos. E a ocupação pelas famílias provenientes dos PALOP continuou, anos a fio, perpetuando esta precariedade.

Felizmente, esta realidade está a mudar, com o apoio da Misericórdia de Seixal. Em finais de 2017, a Santa Casa formalizou um protocolo com a autarquia e o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) para iniciar o realojamento de 234 famílias, do bairro de Vale de Chícharos, entre 2018 e 2022. O processo começou pelo lote 10, edifício que albergava maior número de famílias, 64. A Misericórdia foi responsável por adquirir as frações, com apoio financeiro tripartido, em várias freguesias do concelho, para não criar um gueto noutro local. Decisão elogiada mais tarde pelo primeiro-ministro, António Costa, na cerimónia de conclusão da primeira fase de realojamento, em que 187 pessoas foram distribuídas por 64 habitações.

As famílias foram realojadas em apenas duas semanas, depois de assinar contratos de arrendamento (rendas acessíveis adaptadas aos rendimentos), mas o processo não terminou no início de 2018. Segundo o provedor Edison Dias, esta “empreitada, que só foi possível concretizar com muita força de vontade e persistência” tem envolvido o acompanhamento e inserção social das famílias nas novas habitações e vizinhanças. “Foi uma grande mudança na vida das pessoas e a adaptação nem sempre é fácil. As pessoas moravam num contexto completamente diferente e teve de haver acompanhamento em relação aos outros vizinhos”. Este trabalho continua até hoje com uma única missão: “dar habitação condigna e garantir a dignidade humana, uma das obras de misericórdia e o princípio para tudo o resto”, resume.

O provedor da Misericórdia do Porto, a segunda maior proprietária da cidade, a seguir à autarquia, está de acordo neste ponto: o alojamento é o princípio de tudo. “A habitação faz a diferença no conforto e na qualidade de vida das pessoas. Logo é um direito protegido que deve ser exigido. Precisa de ser uma política pública e não pode ser deixado ao livre arbítrio do mercado”, observa António Tavares. Nesse sentido, defende uma política “integrada para este setor envolvendo Estado, autarquias, famílias e IPSS”, onde destaca a título de exemplo o Programa Especial de Realojamento, iniciado em 1993, no âmbito do qual foi construído o bairro Daniel Constant, gerido pela Santa Casa, que hoje alberga 90 famílias, “perfeitamente enquadradas”.

Na capital, temos o exemplo da Misericórdia de Pernes, com mais de 40 prédios ocupados por famílias da classe média, universitários e trabalhadores-estudantes, com rendas inferiores às praticadas no mercado, fruto do legado do benemérito José Gonçalves Pereira.

Fora dos centros urbanos

Menos sujeito à especulação imobiliária, o interior do país oferece outro tipo de soluções, adaptadas às necessidades das famílias e contexto local. São, na sua maioria, moradias térreas, com espaço exterior, que geram dinâmicas de convívio e entreajuda entre famílias.

Em Medelim, as casas geminadas, com quintal nas traseiras, têm nome de Santos (António, Rita, José, Teresinha, Pedro, etc) e estão distribuídas ao longo da estrada que liga a vila a Castelo Branco. No exterior, entre árvores e arbustos, são delimitadas por um muro de granito “marca identitária na região”, que emoldura portas e janelas, conforme se lê num volume da autarquia, sobre a história da instituição. O bairro gerido por uma benfeitora da terra, Maria Rita Marques, foi doado à Santa Casa na década de 1980, e acolhe hoje famílias de todas as idades, que pagam rendas acessíveis (150 a 200 euros). “As casas têm quatro assoalhadas e quintal que antigamente era aproveitado como horta para sustento das famílias. Três foram, entretanto, ocupadas por casais novos, que trabalham em Medelim, e os idosos gostam desse movimento, com crianças”, conta a provedora Ana Filipa Fonseca, que tomou posse em 2018.

Em Ovar, os habitantes do bairro da Misericórdia, inaugurado em 1949, e do bairro do Casal, incorporado em 1974, são muito “bairristas, no bom sentido da palavra, e orgulhosos do conjunto urbanístico cuja tipologia e tipo de construção é semelhante entre si”, explica ao VM Eduardo Pereira, administrador da Santa Casa. Alguns dos primeiros habitantes ainda moram nos bairros, com 50 e 25 casas, respetivamente, sendo hoje proprietários das habitações, em mais de 50% dos casos. Outros continuam a pagar rendas simbólicas, que não foram alvo de atualizações. Mas em muitos casos, a mesma família permanece ao longo de três gerações.

Nestas casas escrevem-se histórias de vida, que dão nota do apoio real das Misericórdias, ao longo de várias gerações. Por isso, nada melhor que ler os relatos na primeira pessoa. “Sou bombeiro profissional, tenho 37 anos, e a minha esposa trabalha no lar de idosos da Santa Casa. Já moro no bairro da Misericórdia de Mora há 8 anos, mas brinquei aqui em miúdo, numa altura em que se podia correr na rua, andar de bicicleta e subir às árvores. A minha avó morou aqui e o meu pai foi aqui criado”. Luís Calhau e a família mudaram-se para uma das 50 casas da instituição em 2012. “Estava como nova, pintada de fresco”, recorda. 

Sempre que vaga uma casa, conta-nos o vice-provedor de Mora, a instituição faz obras de remodelação integral, que podem custar até 10 mil euros por bloco. “O propósito é meramente social, cuidar das pessoas, uma missão da Misericórdia. É uma mais-valia para as famílias, que não conseguem pagar os preços que se praticam agora em Mora, 350 euros por um T2”, refere José Mariano. Luís Calhau e a família não podiam estar mais satisfeitos: “As casas são acolhedoras e dão perfeitamente para viver aqui com dois filhos, como nós. Gosto muito do bairro, os vizinhos entendem-se bem e é um desafogo para nós. Se tivéssemos de pagar uma renda normal teríamos de sair do país. Espero bem que seja uma casa para o futuro”.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas

Fotografia: José Artur Macedo