Num contexto de despovoamento e envelhecimento acelerado, as Misericórdias do distrito de Portalegre resistem aos desafios da região que mais sofre com a interioridade

As Misericórdias do distrito de Portalegre são peça fundamental do sistema de proteção social no território, prestando apoio a milhares de utentes em diversas respostas sociais. Contudo, enfrentam um conjunto de dificuldades estruturais que, num contexto de despovoamento e envelhecimento acelerado, tornam cada vez mais desafiante a sua sustentabilidade naquela que é a região que mais sofre com a interioridade a nível nacional.

Nas últimas décadas, as Misericórdias, quase todas com centenas de anos de existência, têm investido na ampliação e criação de infraestruturas destinadas a apoiar aqueles que ainda teimam em se fixar neste território.

Segundo dados do Instituto da Segurança Social (ISS), as 24 Misericórdias ativas no distrito apoiam 4780 utentes, dos quais 3449 beneficiam de acordos de cooperação. Em 2024, estas instituições receberam um total de 18 milhões de euros em comparticipações do ISS para o desenvolvimento de respostas sociais, na concretização “de um relevante apoio social à sociedade e aos beneficiários”.

Apesar deste montante significativo e dos aumentos recentes, o próprio Centro Distrital de Portalegre do ISS, em declarações ao VM, reconhece que “as Misericórdias e outras IPSS têm vindo a partilhar constrangimentos e dificuldades que se prendem com sustentabilidade e escassez de recursos humanos”.

“Salvaguardando algumas situações, que têm algum património próprio”, as Misericórdias “estão fortemente dependentes das receitas públicas, obtidas no âmbito de acordos de cooperação, e das receitas oriundas dos pagamentos a cargo dos utentes e famílias respetivas”, explica o Centro Distrital, acrescentando que “as reformas baixas, a escassez de recursos humanos e a falta de capacidade de atrair quadros técnicos mais jovens são algumas das principais queixas” das Misericórdias desta região.

Ainda segundo o ISS, “a diferenciação positiva” desejada para o setor social do interior deverá assentar em indicadores concretos que permitam aferir em que termos e de que forma essa diferenciação deverá existir. Por ora, a resposta mantém-se uniforme a nível nacional, apesar das disparidades evidentes entre o interior e os grandes centros urbanos, situação que muito preocupa a provedora da Santa Casa da Misericórdia de Arronches. Para Deolinda Pinto, a “falta de uma visão de futuro ajustada à realidade dos territórios” pode colocar em perigo “o legado secular das Misericórdias”.

Uma das preocupações prende-se com recursos humanos. O Alto Alentejo tem um número muito reduzido de população ativa, o que dificulta o recrutamento. A exigência física e emocional das funções associadas ao setor, aliada à baixa atratividade salarial, contribui para a rotatividade e dificulta a fixação de quadros técnicos.

Para colmatar a falta de profissionais, a contratação de imigrantes já é prática transversal nas Misericórdias da região e em alguns casos tem sido uma solução bem-sucedida. Contudo, essa integração exige trabalho adicional de adaptação cultural e logística, especialmente face à escassez de habitação acessível. A Misericórdia de Arronches, situada num dos concelhos mais envelhecidos e despovoados do distrito de Portalegre, é um exemplo deste cenário. A provedora aponta que as principais dificuldades enfrentadas passam pela escassez de profissionais qualificados, sendo necessário recorrer à contratação de migrantes - maioritariamente do Brasil - para suprir lacunas no quadro de pessoal. Apesar da boa integração linguística, há desafios ao nível dos hábitos culturais, métodos de trabalho e uso de tecnologias. “É necessário um esforço de formação e adaptação que nem sempre é possível com os recursos que temos”, lamenta.

Outro obstáculo destacado é a desvalorização social e profissional das funções de cuidado. Considerando a sua experiência de vários anos enquanto provedora, Deolinda Pinto não tem dúvidas em constatar que as novas gerações rejeitam horários rotativos, salários baixos e exigências emocionais elevadas. A rotatividade é alta, o que compromete a continuidade e qualidade dos cuidados. “Não há consolidação de equipas e isso afeta os utentes”.

Acresce que os arrendamentos no interior, antes acessíveis, tornaram-se incomportáveis para quem aufere o salário mínimo. “Estamos a falar de rendas de 500 euros para trabalhadores com ordenado mínimo. Isto torna-se insustentável e afasta os poucos que conseguimos atrair”, denuncia a provedora.

A dificuldade em encontrar novos dirigentes para integrar os órgãos sociais é outro sintoma preocupante, como descreve Deolinda Pinto, que tendo já terminado o seu mandato em dezembro de 2024, após o limite legal de permanência, e apesar de várias tentativas, não há listas candidatas à sucessão. “As pessoas não estão disponíveis para assumir estas responsabilidades. É um problema grave e transversal ao distrito”, diz.

Sem medidas estruturadas para atrair e fixar pessoas, melhorar a qualificação de profissionais e garantir sustentabilidade financeira diferenciada, estará o futuro das Misericórdias neste território em risco?

Para Deolinda Pinto, as dificuldades diárias com que vivem as Misericórdias do distrito de Portalegre são bastante preocupantes, pelo que diz ver um futuro “cinzento” para estas instituições. “As necessidades cada vez são maiores, vivemos mais anos, mas isso também quer dizer que vivemos com mais comorbilidades e, portanto, precisamos de mais cuidados”. Caso “não sejam tomadas medidas urgentes”, diz mesmo recear que “qualquer dia não tenhamos pessoas para cuidar dos nossos utentes e os idosos não podem ficar ao abandono”, constata.

A provedora da Misericórdia de Arronches reforça ainda a ideia de que estas instituições do setor social devem ser vistas como atores económicos fundamentais e não apenas como organismos de caridade. Em Arronches, por exemplo, a Misericórdia movimenta mais de dois milhões de euros anuais e é uma das maiores empregadoras locais. “Estas organizações sustentam famílias, prestam cuidados e também geram emprego. Devem ser tratadas com o mesmo rigor que qualquer empresa”, defende.

No entanto, a falta de preparação técnica entre os irmãos e dirigentes agrava as dificuldades. “Hoje, gerir uma IPSS exige conhecimento jurídico, contabilístico, humano. Não basta boa vontade. E poucos estão preparados ou dispostos a assumir esse papel.”

Deolinda Pinto defende que é necessária uma mudança estratégica a nível nacional, com envolvimento dos ministérios da Saúde e da Segurança Social, mas também da Habitação e Coesão Territorial. “É preciso pensar o setor social em conjunto, de forma integrada. Porque quem é doente também tem problemas sociais e vice-versa”. Deixa, por isso, um apelo ao Estado para que “oiça quem está no terreno”. “Nós sabemos o que os nossos utentes precisam. E precisamos de apoio robusto, porque estamos a substituir o Estado no cuidado à população.”

Voz das Misericórdias, Patrícia Leitão

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