No âmbito de uma investigação histórica, a Misericórdia de Loulé concluiu que celebra este ano cinco séculos de existência

O ano de 2018 tem um significado especial para a Misericórdia de Loulé que comemora 500 anos da fundação da sua irmandade. A data merece ser celebrada com pompa e circunstância, pois foi recebida num misto de alegria e surpresa. “Foi extraordinário para nós saber que fazemos 500 anos. Esta mesa administrativa está aqui há 17 anos e pouco sabíamos sobre a fundação desta Misericórdia” revela o provedor Manuel Semião.

Até há bem pouco tempo pensava-se que a sua fundação remontava ao ano de 1524, dado que a mais antiga referência documental inequívoca à Irmandade da Misericórdia de Loulé data desse ano. Mas o historiador de arte, Marco Santos, conseguiu vasculhar os arquivos históricos e encontrar referências à data que marca o início de uma instituição com uma valiosa e extensa história.

Tudo indica que a Misericórdia de Loulé terá iniciado funções em 1518, o que significa que 2018 é um ano de comemorações. E os festejos iniciaram-se no dia 30 de setembro com uma eucaristia solene à qual se seguiu a palestra “A Fundação da Irmandade da Misericórdia de Loulé”, proferida pelo historiador responsável pela pesquisa nos arquivos. 

A cerimónia serviu também para homenagear os colaboradores com 20 e 25 anos de serviço que receberam o diploma de reconhecimento profissional e uma medalha criada em especial para a data dos 500 anos. E irá culminar, brevemente, com a publicação de duas obras, uma delas da autoria de Marco Santos.

Perante os factos, será correto apresentar 1518 como a data da fundação da Misericórdia de Loulé? O historiador de arte Marco Santos tira-nos as dúvidas: “É preciso salientar que não temos um documento que nos indique especificamente esta data de 1518, mas temos documentação que aponta nesse sentido, por exemplo, um estudo publicado pelo professor Veríssimo Serrão, catedrático em história, que de facto aponta como data de fundação para a Misericórdia de Loulé este ano de 1518, e é nesse estudo e na documentação atualmente conhecida que nos baseamos para avançar e para confirmar o ano de 1518 como a data mais provável da fundação desta irmandade”. 

Para o historiador “não é descabido pensar que Loulé já tinha Misericórdia em 1518, quando nesse ano todos os termos limítrofes já dispunham de irmandades da Misericórdia, nomeadamente Tavira, Albufeira e Faro”. Além disso há outros documentos antigos que dão a entender que a fundação da irmandade é anterior ao ano de 1524. 

Desde logo foi encontrado no espólio privado da Irmandade documentos que falam sobre o capítulo 21º do compromisso da Misericórdia de Lisboa, compromisso que serviu de modelo à organização interna de muitas Misericórdias do país, entre elas, a de Loulé. Existe uma transcrição do século XVIII do artigo 21º do Compromisso da Misericórdia de Lisboa de 1516 que sugere que a Misericórdia de Loulé teve compromisso aprovado antes de 1520”. Como explica ao VM Marco Santos: “No início do século XVI o rei D. Manuel, de modo a promover a fundação de novas Misericórdias, envia para todos os concelhos do país cópias desse compromisso para que as novas fundações espalhadas por todo o reino seguissem os princípios comuns da Misericórdia de Lisboa. No século XVIII por algum motivo os irmãos da Misericórdia de Loulé transcreveram esse capítulo 21 e o que é interessante verificar é que ele foi eliminado do compromisso da Misericórdia de Lisboa em 1520. Ora se ele deixou de ser usado em 1520 isto indica-nos, de algum modo, que a irmandade terá sido fundada, e o seu compromisso confirmado, em data anterior ao ano de 1520”. 

Apesar de não integrar o conjunto das Misericórdias mais antigas do Algarve, a Misericórdia de Loulé faz parte daquelas que foram fundadas pela rainha D. Leonor e por D. Manuel, os grandes impulsionadores destas instituições. “A historiografia atual tende a transferir alguma da importância que se dava à rainha D. Leonor neste projeto global também para o rei D. Manuel, isto porque sabemos que logo em 1499 o rei vai expedir uma circular para todas as câmaras do país em que incita os nobres e fidalgos das suas terras a fundar novas Misericórdias”. 

Embora muitas interrogações subsistam, aos poucos vão-se conhecendo mais detalhes sobre a complexa história da Misericórdia de Loulé. Acredita-se que no ano da sua fundação a irmandade fosse constituída por 100 irmãos. “Temos no arquivo privativo desta instituição o Livro do Assentamento dos Irmãos, que tem exatamente 100 páginas numeradas de um a cem, e no qual se arrolavam os nomes de todos os irmãos. Trata-se de um livro do século XVIII, mas terão existido outros de idêntico teor mais antigos. Só era admitido um novo irmão em caso de morte ou de afastamento da Irmandade”, conta. 

Conversando com o historiador de arte, que cronologicamente nos vai ajudando a esmiuçar os pormenores da fundação da Misericórdia de Loulé, quisemos também saber que funções exercia a Irmandade no início da sua fundação? Na época o apoio dado à comunidade consistia fundamentalmente nas 14 obras de misericórdia, sete obras corporais e sete espirituais.

“A documentação diz-nos que a Misericórdia ajudava os mais desfavorecidos da vila, pagando medicamentos e alimentação, fornecendo roupa, comida e dinheiro”, refere o historiador. Aqui desempenhou um papel muito importante o hospital de Nossa Senhora dos Pobres, fundado no século XV, e que hoje desempenha um papel fundamental na cidade de Loulé. O hospital, a funcionar em pleno, e a igreja da Misericórdia, onde funciona desde 2013 o núcleo museológico, constituem atualmente o grande património da Misericórdia.  

Mas existe ainda o património histórico e artístico da Irmandade que, segundo Marco Santos, é muito vasto e valioso, indo de peças de arte (retábulos, pinturas) até peças de cantaria e alfaias litúrgicas. Todas estas peças podem ser apreciadas no núcleo museológico da Misericórdia de Loulé, que se orgulha de ser a instituição que conseguiu atravessar cinco séculos de história e se mantém nos dias de hoje como a grande instituição particular de solidariedade social do concelho. 

Voz das Misericórdias, Nélia Sousa