“As memórias nunca se apagam. E quanto mais anos temos, mais vivas se tornam.” As palavras são de Maria Lucília, de 76 anos, e dão o mote, simbolicamente, para o desfile ‘Aventais de Memórias’, um momento de celebração intergeracional promovido pelo Contrato Local de Desenvolvimento Social (CLDS) 5G Mora – Gerações em Movimento, sob coordenação da Santa Casa da Misericórdia de Mora, no distrito de Évora.

O evento decorreu na Horta do Lameirão e contou com a apresentação de 120 aventais, Desfile de aventais e afetos para ligar diferentes gerações criados no âmbito de um trabalho coletivo, que envolveu cerca de 80 participantes das quatro freguesias do concelho: Brotas, Cabeção, Mora e Pavia/Malarranha. Cada avental é uma peça única, feita de tecido, afetos e histórias, numa partilha entre avós, netos e vizinhos, unidos por laços de tradição.

Maria Lucília, antiga colaboradora desta Santa Casa alentejana, emocionou-se ao revisitar o passado através dos dois aventais que confecionou: um inspirado no modelo que a mãe costumava utilizar e outro numa peça branca que servia para os casamentos feitos em casa, como era costume há largas décadas. “Ao fim de 60 anos, voltei a fazer o meu avental. Guardado numa gaveta estava o modelo antigo. E eu voltei a trazê-lo à vida”, revela ao VM. O gesto é carregado de simbolismo. “Celebrar a memória é celebrar a vida. As nossas memórias são as nossas raízes”, disse, ainda, à nossa reportagem.

LAÇOS DE AFETO E PARTILHA

A força do projeto esteve na capacidade de unir gerações. Foi o que aconteceu com Maria de Fátima Cuba, de 54 anos, que participou no desfile ao lado da neta Carolina, de apenas quatro anos. “Foi a primeira vez que costurei um avental. Ela escolheu os lacinhos, os bolsos e os folhos. Participar juntas foi mágico”, confessou.

Fátima acredita que estes momentos marcam a infância de forma profunda, manifestando vontade de que os seus netos “saibam que a avó está sempre presente, que participa, que vive com eles. Esta memória vai acompanhá-los para sempre.”

Também Maria Joaquina Ganhão, de 61 anos, florista de profissão, emocionou-se ao apresentar um avental feito pela sua mãe. “Tem um bolso escondido atrás, onde ela dizia que era para guardar as notas”, recordou. Nunca o voltou a usar desde que a mãe faleceu há cinco anos. Por isso, o dia do desfile foi “muito especial, pois trago a minha mãe comigo, através deste avental.”

COSTURAR AFETOS E SOLIDARIEDADE

O projeto CLDS 5G de Mora, coordenado por Ivone Alves, assistente social, nasceu para dar resposta às necessidades sociais do concelho, num trabalho focado em dois eixos fundamentais: infância e envelhecimento ativo. A proposta de trabalhar os aventais surgiu como continuidade de iniciativas anteriores que também valorizavam o saber tradicional, e de que são exemplo os projetos recentes, das mandalas e da colcha de retalhos.

“Os aventais não são apenas objetos. São transmissões de saberes. As nossas participantes explicaram às crianças como e por que se usava cada modelo. Esta troca é valiosa. Há histórias por trás de cada peça”, explica Ivone. A coordenação técnica envolve também a educadora social Inês Biléu e o psicólogo David Silva, que destacou o poder terapêutico desta atividade: “Mais do que ocupar o tempo, foi um processo de recolha emocional. Surgiram memórias de infância, histórias de superação, de amor, de dor e de orgulho”, salientou.

Uma dessas histórias foi contada por uma senhora idosa que recordou o dia em que, na sua infância, caiu num canal de rega e teve de regressar a casa envolta no avental da mãe. “Na altura, sentiu-se envergonhada. Hoje, recorda com ternura. A memória transforma-se e transforma-nos também”, diz o psicólogo.

David reforça que o projeto serviu também para recolher fragmentos da história local. “O avental era símbolo de cuidado, de elegância e de identidade. Alguns eram só para casa, outros para sair à rua. E cada detalhe tinha um porquê”, acrescenta, fazendo referência à importância de manter vivas as tradições.

PARA ALÉM DO DESFILE

O desfile, sempre muito animado por música e pelos participantes, marcou o ponto alto de um processo participativo, mas não o fim. Está já prevista uma exposição itinerante dos aventais, que passará pelas diferentes freguesias do concelho de Mora, permitindo que todos possam ver os trabalhos realizados.

Além disso, a partir de agosto, numa iniciativa que se intitula ‘Estágio de Verão’, está prevista a realização de um podcast sobre o ciclo da vida, que incluirá entrevistas a pessoas de diferentes faixas etárias. Haverá ainda a recolha de canções tradicionais, que serão utilizadas em sessões de musicoterapia com doentes com demência, culminando na produção de um documentário que será apresentado ao público.

A vertente solidária continua ativa e está sempre presente no dia a dia da comunidade e nos utentes das diferentes valências da Misericórdia de Mora. As voluntárias do projeto, incluindo algumas participantes do desfile, têm produzido almofadas ergonómicas em forma de coração, entregues pessoalmente em hospitais da região a doentes oncológicos. “É um símbolo de cuidado e presença. Uma almofada que representa afeto e solidariedade”, conta-nos, ainda, Ivone Alves.

A COMUNIDADE COMO PROTAGONISTA

O evento, que terminou com a atuação do Grupo de Cantares Alentejanos de Mora, contou com a presença de Manuel Vicente, da direção da Santa Casa da Misericórdia de Mora, e de Nélia Santos, presidente da junta de freguesia local, que destacaram o impacto positivo da iniciativa e a importância de continuar a investir em ações que valorizem o património humano e afetivo da comunidade.

Em Mora, o desfile mostrou que os aventais deixaram de ser apenas uma peça de vestuário. Tornaram-se testemunhos vivos de uma memória coletiva, de afetos e de pertença, no fim de contas, um fio invisível que continua a coser gerações, passado e futuro, com a linha do cuidado.

Voz das Misericórdias, Rosário Silva