Este artigo de opinião do diretor de serviços da Misericórdia de São João da Madeira, Vítor Gonçalves, integra a edição de novembro do Voz das Misericórdias. Leia aqui os artigos de opinião de Carrazeda de Ansiães e da Irmandade da Misericórdia de São Roque de Lisboa.
Nos volteios acrescentou-se valor à cidadania, sujeitos de direitos, pois algo tem de ser feito para estes se cumprirem. O Estado emergiu como garante, o trabalho social profissionalizou-se, adveio a burocracia. Tudo em nome de uma intervenção mais capaz. A exclusão da plena cidadania foi problematizada, tornou-se multidimensional, objeto de uma ação pluridisciplinar. As respostas sociais estenderam-se da proteção na velhice, doença e infância tradicionais, a segmentos especializados, a toxicodependência, os sem-abrigo/ sem-teto, a violência doméstica, os imigrantes, as minorias.
O tempo envolveu a Misericórdia, que intuiu lacunas à sua intervenção tradicional. Foi em 1993, quando percecionou a necessidade de agir na comunidade para fomentar o regresso das crianças residentes no seu centro de acolhimento temporário ao meio ambiente familiar de origem. Assim nasceu o projeto ‘Ser Criança’ que, em 2000, se estabeleceu em centro comunitário, ampliando o raio de ação a famílias desfavorecidas, fornecendo-lhes alimentos, educação social e acesso a recursos como lavandaria e balneário. Em 2024 forneceu 120 toneladas de alimentos, que somam às 25 mil refeições quentes distribuídas pela cantina social. Neste mesmo ano a intervenção comunitária da Misericórdia chegou a 2520 beneficiários.
Hoje a instituição atua na área dos comportamentos aditivos e dependências com uma equipa de intervenção direta e um projeto de reinserção social designado ‘Trapézio com Rede IV’; dá a estes de comer no seu refeitório social; acolhe e capacita pessoas em situação de sem-abrigo/ sem-teto em três apartamentos partilhados. A intervenção mescla projetos, mais experimentais, de duração limitada, com respostas sociais, de tipologia definida, comum, mas permanentes no tempo.
O êxito desta nova abordagem aos problemas sociais deve muito ao desempenho técnico, que enfrenta desafios de monta. Primeiramente, a mobilização e a participação dos destinatários. Depois, a fragmentação da intervenção numa plêiade de instituições, técnicos e medidas, sem articulação ou complementaridade. Passando pela alergia à mensuração de resultados, desconhecendo-se o efeito transformador do trabalho desenvolvido, assim se alienando oportunidades de recalibrar medidas. Gravoso porque torna estéril a montanha de papel produzido e de informação quantitativa recolhida. Alergia assente na noção de que os resultados da intervenção demoram, exigem persistência, mas o discurso público tem pressa, não aceita estender o tempo. Acresce um voluntariado incerto, trendy, que adere por notoriedade do problema social; donativos alimentares frequentemente processados ou açucarados, desadequados à alimentação saudável que se intenta; e destinatários com origens culturais diversas, línguas e tradições estranhas, reclamando novas abordagens.
O mundo volteia, os destinatários desdobram-se, a intervenção complexifica-se. Mas algo permanece gravado no coração da Misericórdia, a sua missão de “acolher, valorizar, cuidar”. A roupagem destes verbos mudou, mas visam hoje o mesmo propósito de ontem: dar à pessoa a dignidade de ser pessoa.
Vítor Gonçalves, diretor de serviços da Misericórdia de São João da Madeira