O que é a economia social? Questão complexa e controversa, a definição do conceito de economia social tem vindo a ser objeto de renovada atenção tanto no plano nacional como no plano europeu. Várias razões contribuem para esse facto.

Em primeiro lugar a relevante expressão quantitativa que em termos de emprego ou criação de valor este sector, também conhecido como terceiro sector, tem vindo a assumir. A elaboração da Conta Satélite da Economia Social pelo INE, com a colaboração da CASES, deu corpo e visibilidade a essa realidade.
Composta por diferentes tipos de organizações de matriz associativa (cooperativas, mutualidades, Misericórdias, fundações e muitas outras organizações sem fins lucrativos) o sector viu nos últimos anos concretizarem-se importantes passos para o seu reconhecimento: a aprovação da Lei de Bases da Economia Social pelo Parlamento e a criação da Confederação Portuguesa de Economia Social.

Ainda assim, continua para muitos a ser pertinente a questão acima colocada: o que é a economia social? Uma revisitação, sempre útil, da Constituição da República aponta-nos um caminho simples, mas robusto.

Os artigos 80º e 82º da Constituição enquadram a natureza autónoma e o papel do que é chamado o sector “cooperativo e social”, um dos três sectores da nossa organização económica, a par do sector público e do sector privado.

Daqui resulta uma leitura de equilíbrio complexo e exigente, que pode ser sintetizado no caráter privado (ou particular) dos seus agentes, combinado com a dimensão pública (comunitária) da sua missão.
Naturalmente o caráter não lucrativo, ou de contribuição para o interesse coletivo, do sector social coloca aquela que é, porventura, a questão mais complexa e controversa desta organização: que tipo de relação deve o Estado possuir com o sector social?

Não creio que exista uma resposta única, mas julgo que existem três domínios distintos que têm marcado a construção dessa relação: em primeiro lugar, uma relação de apoio ou diferenciação expressa num tratamento fiscal distinto do sector privado e naturalmente associado ao caráter não lucrativo da missão da economia social; em segundo lugar uma relação de contratação de serviços da responsabilidade direta do Estado que, em diversas situações, podem ser mais eficazmente desenvolvidos pelas organizações sociais e, finalmente, em terceiro lugar, uma relação de cooperação onde o apoio público se dirige, nos termos constitucionais, a apoiar organizações que desenvolvem atividades, por sua iniciativa, que não sendo responsabilidade direta da Administração Pública, devem merecer o seu apoio por corresponderem a necessidades de desenvolvimento social muitas vezes essenciais.

O sector social e solidário, uma das mais importantes componentes do sector social, encontrou nesse conceito de cooperação o seu principal vínculo de relação com o Estado, particularmente depois da assinatura do Pacto de Cooperação de 1996.

A evolução das últimas décadas tem frequentemente questionado a validade deste modelo.

As transformações demográficas, a crescente complexidade das políticas públicas, a exigência crescente das famílias de patamares de bem-estar e apoio mais elevados e, naturalmente, a dureza e profundidade de crises económicas e sociais vividas, tudo isto interpela quase em permanência a eficácia social e económica deste modelo de cooperação.

A atual crise associada à pandemia do Covid-19 veio de novo, e com uma dureza inédita, dar espaço a esta interpelação quando não contestação.

Não julgo que estejamos ainda em condições de retirar todas as conclusões que um fenómeno desta magnitude acarreta. Um fenómeno de caráter global que, pela sua natureza, atingiu particularmente o sector social, tal como aconteceu, em dimensões que ainda desconhecemos, em diversos outros modelos de organização das respostas sociais em muitos países, particularmente na União Europeia.

Em alguns aspetos esta crise acelerou a perceção já existente sobre a fragilidade da natureza e modelos de organização do apoio a comunidades envelhecidas e a pessoas mais idosas. Deveremos olhar, especialmente depois das ações de urgência que vêm marcando os nossos dias, para as mudanças que a experiência nos vai ajudar a construir. As Misericórdias, pela sua história, dimensão e peso nas respostas dirigidas aos mais idosos, têm um contributo central a prestar nesta reflexão.

Não creio, por diversas razões, que seja a existência de uma convivência organizada dos sectores público social e privado um qualquer obstáculo ao desenvolvimento social sustentado e sustentável.

Ao contrário, o sector social possui características que o tornam adequado para melhor suprir aquilo que alguns chamam as “falhas” do mercado e do Estado.  

Essa combinação possui virtualidades capazes de produzir a melhor solução possível em matéria de coesão social, coesão territorial e resposta aos novos e velhos desafios da pobreza e da exclusão.

Naturalmente que isto não quer dizer que não seja necessário um esforço muito sério para enfrentar as dificuldades e para melhorar a qualidade da afetação dos recursos que a nossa sociedade possui.
Trata-se de avaliar criticamente os instrumentos e as modalidades de contratualização e, principalmente, de cooperação e de financiamento da ação social.

Este será um debate longo e que terá de ser sério e profundo. Tem, como sempre acontece, uma dimensão ideológica ou até doutrinária, mas terá de ser baseado em realidades bem conhecidas, em alternativas corretamente avaliadas e em decisões que minimizem a incerteza e promovam a estabilidade nas comunidades e nas instituições.

Identifico, sem ser exaustivo, sete áreas críticas a que, coletivamente, temos de dar resposta:
1.    A ação social desenvolvida em cooperação enfrenta um desafio muito complexo: o de garantir a universalidade do acesso com a diferenciação a favor dos mais frágeis. Isto é, tem de evitar a seleção negativa. Compete ao Estado garantir esse objetivo, mas para tal temos de construir modelos de financiamento rigorosos face a esse risco de fechar portas a quem mais precisa.
2.    Reconstruir uma mais profunda complementaridade entre o apoio domiciliário e as respostas institucionais. Não julgo possível dispensar estas últimas num país marcado por transformações demográficas muito profundas, por fenómenos migratórios novos e velhos e pela fragilização muito acentuada dos laços familiares.
3.    A articulação mais eficaz entre as respostas sociais e as respostas da área da saúde, beneficiando da experiência da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, será cada vez mais decisiva para a melhoria do bem-estar das nossas comunidades.
4.    As instituições da área social e solidária desempenham um papel de enorme relevo na integração, nomeadamente nos seus corpos sociais, de mulheres e homens que, depois de uma, tantas vezes longa vida profissional, trazem para o sector o seu saber e experiência. É um contributo de dimensão e valor excecional que, no entanto, terá de ser cada vez mais combinado com o reforço da profissionalização de muitas das instituições, tarefa que deverá contar com um apoio acrescido das políticas públicas.
5.    A melhoria da eficácia na afetação de recursos exige que se desenvolva uma mais forte cooperação no sector social na linha dos serviços partilhados e da articulação entre distintos sectores da economia social, valorizando, por exemplo, as áreas de produção de bens e serviços numa lógica de proximidade.
6.    A diversidade territorial das condições sociodemográficas do nosso país impõe que se desenhem respostas adequadas a essa diversidade, o que implica, por exemplo, uma articulação mais intensa entre o poder local, o sector social e a administração central. Aliás, seguindo excelentes exemplos que existem em diversos territórios, nomeadamente nas Áreas Metropolitanas.
7.    Igualmente a crescente diversidade das situações objetivas e subjetivas de grande parte dos utentes das respostas sociais (do ponto de vista da saúde, da mobilidade, do envolvimento familiar…) constitui um desafio de crescente importância. Combinar as tipologias existentes de respostas padronizadas com um acompanhamento cada vez mais personalizado, às mulheres e homens para quem as instituições trabalham é um imperativo que vai crescer em relevo e visibilidade.

Estes desafios, a par de alguns outros, inserem-se claramente na questão mais geral da sustentabilidade das respostas sociais oriundas do sector solidário.

Não há uma resposta única à questão da sustentabilidade, ela tem de nascer na combinação das relações das instituições com as comunidades e as famílias, nas relações das instituições consigo próprias e com os seus pares e na relação com o Estado e as políticas públicas. Abandonar esta tripla exigência poderia levar a sérios riscos de perda de identidade do sector.

Acredito que o reforço e desenvolvimento do sector social em Portugal faz parte de uma agenda ambiciosa de progresso e melhoria da coesão social.

Não sendo, nem nunca podendo ser um tipo de serviço público de segunda linha ou de resposta segregada ou estigmatizada.

Mas sendo uma manifestação de comunidades socialmente ativas, coesas e solidárias e como expressão de uma diversidade que se assume olhos nos olhos.

Aos poderes públicos cabe a resposta decisiva das políticas sociais como representantes das comunidades que somos. Mal andaríamos se não soubessem integrar e valorizar essa diversidade e essa riqueza democrática.

José António Vieira da Silva,
Político e ex-ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social

Voz das Misericórdias