São néctares que nascem do património agrícola doado às Santas Casas e que, por visão dos seus provedores, chegam ao mercado a dar provas da sua qualidade

Portugal foi o único país da União Europeia cuja produção de vinho cresceu no último ano, segundo a Organização do Vinho e da Vinha (OIV). O setor tem conhecido um enorme dinamismo, com o aumento de marcas, níveis de consumo e volume de exportações. É neste contexto que as Santas Casas se impõem no mundo dos vinhos, conquistando prémios e retirando dividendos para a sua ação social.

Inseridas em regiões vinícolas, as Misericórdias do Fundão, Macedo de Cavaleiros e Valpaços têm vindo a produzir néctares que herdam a qualidade dos solos onde as cepas crescem e refletem o conhecimento dos enólogos. Na última campanha, estas instituições geraram mais de 60 mil litros, o que leva os seus provedores a reconhecerem que é uma mais-valia ter esta fonte de rendimento. “Tem sido um complemento à atividade agrícola e social da Misericórdia do Fundão, rentabilizando o património doado pelos seus benfeitores”, afirma o provedor Jorge Gaspar.

Ainda que a produção vínica seja “um pequeno fator de sustentabilidade”, o provedor valpacense sublinha que “os pequenos contributos geram uma grande contribuição” para a instituição que apoia, aproximadamente, 700 utentes e emprega mais de 300 colaboradores. “Além de nos permitir valorizar as doações que nos foram feitas, este setor é complementar para os resultados económicos. É, também, a ligação da Misericórdia à área agrícola e permite que os nossos utentes participem na vindima e relembrem os tempos em que eram pessoas ativas”, acrescenta Altamiro Claro.

Para o provedor da Santa Casa de Macedo de Cavaleiros, Alfredo Castanheira Pinto, não há dúvidas: “a aposta na produção de vinhos é, sem dúvida, uma aposta ganha.”

De experimental a marca certificada

“A produção de vinho está relacionada com a doação de propriedades agrícolas à Misericórdia de Valpaços, designadamente a Quinta Nossa Senhora do Carmo, em Valverde. No fundo, significou um aproveitamento das preexistências”, relata o provedor.

Remonta a 1998 a criação de um campo experimental, onde foi plantada vinha, em parceria com a Direção Regional de Agricultura e Pescas do Norte. Uma década depois é que se arrancou com a comercialização de diversas marcas. Agora, a aposta é o vinho corrente, em bag-in-box sob a marca “Toca da Lebre”, e um lote específico para “ter um vinho de elevada qualidade” a cada ano. Os cinco hectares têm granjeado uma média anual de 30 mil litros, ainda que em 2019 tenham rendido mais 10 mil.

O provedor garante que “apostar mais na qualidade do que na quantidade tem sido a melhor estratégia para a rentabilização, porque havia custos de produção elevados com os vinhos DOC”. Sérgio Almeida, diretor dos serviços gerais, reforça: “é apostar principalmente na qualidade do vinho e ter uma produção controlada para sermos diferenciadores no mercado”. Só assim se explica que o Grande Reserva tinto da colheita de 2015 tenha sido medalhado com ouro e o branco da colheita de 2016 com prata.

É certo que "o bom vinho escusa pregão", mas a certificação é o selo de qualidade que atesta o cumprimento de vários requisitos, dando confiança ao consumidor. “Além disso, só os vinhos certificados ostentam uma determinada origem, neste caso, a região de Trás-os-Montes, o que, enquanto promoção e posicionamento no mercado, permite chegar mais facilmente ao consumidor final”, sublinha a enóloga Ana Alves.

Batizado com o nome “Valpaço-Lo-Velho”, em homenagem ao concelho, o vinho tinto fermenta em lagar de granito com pisa a pé e controlo de temperatura, o que permite extrair das castas tinta-amarela, tinta-roriz e touriga-nacional “o mais elevado patamar de qualidade”. “Segue-se um estágio em barricas de carvalho francês que, consoante as características de cada colheita, varia de 9 a 12 meses”, acrescenta a enóloga.

Foram produzidas três mil garrafas (de 0,75l) e cada uma é vendida a 10 euros. O lote está “praticamente vendido”, com solicitações do Porto, de Lisboa e até de Espanha, França, Alemanha. “Neste momento, o nosso vinho de 2016 foi classificado como Grande Reserva e vai ser lançado no mercado em breve”, revela o provedor. O vinho corrente é escoado para os restaurantes do concelho e as Misericórdias de Amarante, Valongo, Vila do Conde e Boticas são “clientes habituais”.

É com desenvoltura que Daniel Batista, encarregado da quinta, explica todo o processo produtivo. Nesta manhã abafada, sabe-lhe bem o fresco da adega, onde vai colando os rótulos nas garrafas de branco. Já as mãos possantes de Clemente Barbeiro retiram as garrafas de uma caixa gigante, onde há mais de 400 garrafas, para uma pilha para as manter em posição horizontal. “Estou a deitá-las para empertigar as rolhas e evitar que vertam”, explica. Apesar das gotículas de suor na testa, garante que “não cansa”. “Custa bem mais engarrafar do que colocar aqui”, atira.

Vinhos premiados e diversificados

Desde 1973 que Alfredo Castanheira Pinto assume o setor agrícola como uma das áreas primordiais para a sustentabilidade da instituição macedense, dando cumprimento à obra de misericórdia “dar de comer a quem tem fome”. Por outro lado, tem-se procurado “lançar vinhos de qualidade” no mercado, canalizando as verbas das vendas para “ajudar a custear os encargos que tem enquanto instituição particular de solidariedade social”.

Entre 2001 e 2003, plantaram-se vinhas novas e instalou-se a Adega Quinta do Lombo, garantindo todo o controlo do processo desde a videira até à garrafa. E, assim, sob a chancela da Misericórdia, produzem-se espumantes, brancos, rosé e tintos. “Criámos, em 2015, um lote Grande Escolha com estágio em madeira, que teve muita aceitação, e optámos pela continuidade. Simultaneamente, produzimos um lote de vinho tinto acondicionado em bag-in-box, que é para autoconsumo e para venda a IPSS e restaurantes”, refere.

No último ano, a produção vínica rondou os 20.500 litros e já é longa a lista de prémios arrecadados em concursos nacionais e internacionais. “Podemos destacar, a título de exemplo, o vinho Espumante 2004 ter sido reconhecido com medalha de ouro no «Wine Masters Challenge» ou as medalhas de ouro para o vinho Tinto Grande Escolha 2018 e para o vinho Branco 2017 Colheita Selecionada, atribuídas pela Comissão Vitivinícola Regional de Trás-os-Montes e Alto Douro.”

Na saga da promoção

A garrafa que é repositório dos néctares rubros da Santa Casa do Fundão chegou ao mercado com a marca “Quinta D’Arraboa”, nome da primeira quinta doada à Misericórdia. “Solidarium” é o nome que se inscreve nas bag-in-box que também comercializa. “O vinho é produzido apenas para o mercado nacional, sendo diretamente distribuído em estabelecimentos de restauração na região da Cova da Beira e comercializado em duas grandes superfícies comerciais portuguesas”, refere o provedor.

Assim, a estratégia será “implantar a marca de norte a sul do País”. “Iniciámos este projeto com uma produção anual aproximada de 15.000 garrafas, mas, uma vez que continuámos a vender mais de metade da produção de uva, há três anos duplicámos a área de vinha, com novas castas, para introduzirmos no mercado uma marca de vinho branco”, adianta.

Foi para aproveitar as potencialidades da Quinta da Panasqueira que a Misericórdia do Fundão decidiu, em 2014, dar um novo destino às uvas das vinhas. A comercialização arrancou em 2016, ano em que a instituição celebrou 500 anos e recebeu o congresso das Misericórdias portuguesas. O primeiro tinto “Quinta D´Arraboa” chegou ao mercado com um rótulo assinado pelo pintor e ceramista Manuel Cargaleiro e, entretanto, somou distinções que provam a sua qualidade: medalha de ouro no 10º Concurso de Vinhos da Beira Interior e medalha tambuladeira de prata no 6º Concurso de Vinhos do Crédito Agrícola.

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Voz das Misericórdias, Patrícia Posse