Criada em 1500, a Misericórdia de Proença-a-Velha mantém vivas as tradições relacionadas com a Semana Santa. A população é cada vez mais pequena, mas as celebrações continuam genuínas

Criada no ano de 1500, a Santa Casa da Misericórdia de Proença-a-Velha é das mais antigas do país e sempre se lhe conheceu atividade. Já foi ‘Casa de Roda’, que era como antigamente se chamavam as casas que recebiam crianças órfãs. O seu edifício já albergou a antiga escola primária e, mais recentemente, a extensão de saúde da aldeia. Neste momento, dedica-se em exclusivo ao culto, mantendo vivas as celebrações da Semana Santa. Desde 2017 que está entregue a uma comissão administrativa, nomeada pelo bispo da diocese e presidida pelo pároco da aldeia, Martinho Lopes Mendonça, que é renomeado todos os anos. Foi a forma encontrada para que a Misericórdia não encerre e continue a cumprir a sua função que é, sobretudo, cultual.

As celebrações da Semana Santa em Proença-a-Velha assumem algumas particularidades, o que as torna verdadeiramente genuínas. Uma delas acontece na quinta-feira quando, durante a missa das 21h, se realiza o ‘Rito do Lava Pés’. O pároco que preside à celebração lava os pés a 12 irmãos da Misericórdia, simbolizando, com este gesto, a instituição de um mandamento novo. Após a missa, o grupo dos 12 passa em frente ao Senhor dos Passos, que beijam nos pés, a S. João Evangelista e a Nossa Senhora, que beijam na face. Seguem depois para a sala da ceia, assim designada por ser onde se realiza a ceia, à meia noite, onde só os 12 irmãos, normalmente os mais velhos, estão presentes. No final saem pelas ruas da aldeia a cantar o Louvado Séssimo, que é um cântico em louvor às chagas de Cristo, “uma espécie de ladainha às chagas do Senhor, cantada só pelos homens”.  

Já na sexta-feira santa, às 15h, na Misericórdia, realiza-se a via sacra seguida de outro momento “muito sentido e muito sério”, que é o ‘Beijar da Santa Face’. Nesse momento, o Senhor já não está na cruz, mas no esquife, todo tapado com um pano. Os irmãos, à medida que vão rezando às chagas, vão destapando os pés, os braços, as pernas, o peito e, no final, com Cristo desnudado, rezam a oração à santa face. “Senhor, na tua santa face foste cravado de espinhos, foste esbofeteado…” e dão um beijo na face de Cristo, “esse beijo é um sinal de gratidão e de reconhecimento”.

O pároco Martinho Lopes Mendonça descreve outra das celebrações da sexta-feira santa, quando às 21h, é feita a ‘Adoração da Santa Cruz’, com três momentos: a liturgia da palavra, com a oração dos fiéis “muito longa em que se reza por todos, crentes, não crentes, cristãos, não cristãos, (…) uma oração verdadeiramente universal”; a adoração da cruz, em que o pároco vai ao fundo da igreja, traz a cruz e já no altar a coloca no chão para os fiéis fazerem o seu gesto de adoração, “um beijo, uma vénia, ajoelhar-se ou colocar a mão na cruz”, e finalmente a comunhão, seguida da procissão do ‘Enterro do Senhor’ que é acompanhado pelo ‘Canto da Verónica’, “genuíno, que se canta há centenas de anos e tem passado de geração em geração”.

No final da procissão, o Senhor é metido no sepulcro e depois tudo é preparado para o sábado de Aleluia, “enfeitam a escadaria monumental com flores e em cima o sepulcro vazio”.

No sábado, à meia noite, “o povo começa a cantar as alvíssaras com os adufes e depois de darem a volta à aldeia vão à Misericórdia, já de portas abertas, toda cheia de flores e com o sepulcro vazio. E assim se recria a ressurreição.” O local é enfeitado com flores naturais: “Já encomendei centenas de flores, as pessoas também são muito generosas e oferecem muitas à Misericórdia”.

No domingo de Páscoa, os irmãos da ‘Ceia dos 12’ integram a procissão antes da missa, em nome da Misericórdia, e ao som do canto da Aleluia vão primeiro à igreja da Misericórdia contemplar o sepulcro vazio e o jardim florido e depois para a igreja matriz onde se realiza a missa da festa.

São rituais, cerimónias e celebrações que dão muito trabalho e requerem “muita gente, muita dedicação e muita fé”. Só para as diversas procissões é preciso muita gente “para levar lanternas, andores, bandeiras e cada vez as pessoas são mais idosas e são menos.” Apesar disso, Martinho Lopes Mendonça acredita que estas celebrações se vão manter vivas e genuínas “enquanto forem feitas pelo povo, porque quando o povo faz tem em conta a herança que recebeu dos antepassados”.

Atualmente a Misericórdia de Proença-a-Velha tem 525 anos e 150 irmãos e, além das celebrações da Semana Santa, continua a cumprir a obra de misericórdia ‘enterrar os mortos’ já que é na sala contígua à igreja que se fazem os velórios da aldeia durante o ano. Além disso, celebra todos os anos o dia da padroeira, a 8 de dezembro, com uma missa e uma procissão a Nossa Senhora da Conceição.

Voz das Misericórdias, Paula Brito Batista