Os utentes dos lares não receberam visitas dos familiares nem saíram para os ver durante mais de 60 dias. As portas dos equipamentos fecharam dia 16 de março, como forma de travar a entrada do vírus, e desde então tudo mudou nas rotinas de residentes e profissionais.

No mês em que se inicia o desconfinamento e reabertura ao exterior, fazemos o balanço dos últimos meses, para além dos números de infetados, recuperados e vítimas mortais. Foram criadas equipas fixas, com turnos de 14 dias, suspensas as atividades de animação e fisioterapia em grupo e o contacto passou a ser mediado por materiais de proteção num “baile de máscaras contínuo”. Histórias de superação coletiva e estratégias de coordenação local, em circunstâncias adversas, onde se conjugaram focos de transmissão comunitária e escassez de materiais de proteção, desinfetantes e testes de diagnóstico. Mas onde nunca se baixaram os braços. 

O primeiro boletim epidemiológico da Direção-Geral da Saúde (DGS) chegou no dia 2 de março, com dois casos de infeção no norte do país e muitas dúvidas sobre a forma como Portugal ia conter o surto. Os médicos alertaram que o país não estava preparado para lidar com uma eventual pandemia e outras vozes denunciaram, mais tarde, a falta de um plano de resposta sólido a nível nacional (a este propósito sugerimos leitura do artigo de Bagão Félix).

Face à descoordenação entre o poder central e a capacidade de resposta no terreno, as Misericórdias adaptaram os planos de contingência, definidos no início de março, aos recursos disponíveis. Trabalharam em parceria com as autarquias, congéneres e IPSS, laboratórios de análises clínicas, universidades, empresas e bancos de voluntários. Mas nenhuma nega que os principais aliados foram os colaboradores que, de um modo geral, abdicaram de horas de descanso, folgas e feriados, para garantir cuidados aos idosos em confinamento.

Isolamento voluntário

Depois de fechar as portas ao exterior, no início de março, muitas Misericórdias implementaram um sistema rotativo, em espelho, com turnos de 7 ou 14 dias, que implicou, nalguns casos, a pernoita na instituição. Ovar foi das primeiras, se não a primeira, a fazê-lo.

O município foi o primeiro a decretar confinamento obrigatório, por suspeita de transmissão comunitária da Covid-19, e as funcionárias da Misericórdia optaram por ficar em permanência nos dois lares, durante o período de quarentena, para diminuir a possibilidade de contágio. Para o provedor, Álvaro José da Silva, esta foi a solução que “melhor serviu os interesses de todos”, num período de apreensão em que se antecipava que “o concelho ia explodir”.

A explosão de casos na região norte, que ainda hoje totaliza maior número de infetados e vítimas mortais (16396/698, relatório de 18 de maio) veio dificultar o funcionamento das Misericórdias, nas semanas que se seguiram, devido à rutura nos stocks de zaragatoas, lista de espera para diagnóstico e escassez de equipamentos de proteção individual.

Em muitas localidades o alerta foi dado pelos autarcas. No início de abril, o presidente da Câmara Municipal de Aveiro criticou o “mau funcionamento da logística do Ministério da Saúde no abastecimento em equipamentos de proteção individual e testes Covid-19” e adiantou que havia lares à espera de testes de despiste há 15 dias, por falta de zaragatoas.

Encontrar soluções para os problemas

O plano de contingência, com data de 6 de março, não acautelava situações inesperadas como esta. “Começámos a trabalhar nisto muito cedo, mas ficámos completamente descalços porque precisávamos de fazer testes naquela altura e não havia nada, faltavam EPI e tivemos de ir a Lisboa buscar gel desinfetante”, recorda o provedor de Aveiro, João Lacerda Pais. Depois de resolvido este impasse no diagnóstico, foi possível reorganizar a estrutura, com alas e circuitos independentes, e trabalhar de forma articulada com as autoridades de saúde locais, em particular o Centro Hospitalar Baixo Vouga até estabilizar a situação.

Perante a escassez de meios de rastreio, algumas Misericórdias organizaram equipas de diagnóstico internas para agilizar a realização de testes. De outra forma, consideram que os tempos de espera teriam sido muito superiores e a infeção mais difícil de controlar. 

A solução em Santo Tirso passou por adquirir material de colheita a laboratórios certificados para realizar testes de despiste, depois de sete dias a aguardar decisão da Linha de Apoio ao Médico do SNS, relativa a um caso suspeito no Lar Leonor Beleza. Nesta primeira fase, cerca de 50% dos colaboradores e utentes testaram positivo, obrigando a mudanças drásticas (criação de “ilhas” de isolamento e suspensão de atividades de grupo) na unidade de dependentes.

Focada na solução, a Misericórdia de Castro Daire optou por criar também uma equipa de rastreio interna que, segundo o provedor Rui Pinto Rodrigues, se demonstrou “muito eficaz durante o processo, uma vez que os testes demoravam em média 3 a 5 dias e assim passaram a estar disponíveis no momento”. O processo correu tão bem que em pouco tempo a equipa da Santa Casa estava a testar as restantes IPSS do município, a pedido da autarquia.

Colaboração local

Nesta “odisseia” de controlo da infeção, o provedor de Tábua, Joaquim Ferreira Marques, revela que a permanência dos colaboradores, em turnos de 14 dias, o apoio de voluntários com formação em enfermagem e a “boa articulação local”, com a autarquia e entidades de saúde foram determinantes para “conseguir evitar uma calamidade maior”.

O mesmo aconteceu em Foz Côa, onde o provedor adianta que, sem os 45 voluntários que passaram pela instituição, durante quase 2 meses, e o apoio da autarquia, na confeção de refeições (voluntários, ERPI e SAD) e contratação de dois enfermeiros, a Misericórdia teria “colapsado”. “No final de março, enquanto não chegaram os primeiros voluntários, tivemos apenas sete trabalhadores na ERPI a cuidar de 62 idosos, com 47 infetados. O diretor técnico esteve dois dias sem dormir para vigiar os idosos de noite. Foi dramático”.

No distrito vizinho, em Resende, a mobilização local de enfermeiros, em resposta a um apelo da autarquia, foi igualmente determinante para “equilibrar as equipas”, enquanto durou o isolamento profilático de alguns profissionais, conforme adiantou o provedor Jaime Alves.

Preparar a reabertura

O vírus conseguiu entrar em equipamentos que cumpriram as orientações e cancelaram as visitas de pessoas externas, antes da data decretada pelo governo. Por isso, a maioria dos dirigentes e técnicos contactados pelo VM vê com apreensão a reabertura ao exterior. Em Monção, a mesa administrativa escreve em comunicado, publicado nas redes sociais, que a retoma de visitas à ERPI é um “desejo de todos” mas terá de “processar-se, com todas as medidas cautelares” uma vez que a estrutura é ainda um “local de contágio elevado”.

A trabalhar há 60 dias consecutivos, a equipa de saúde da Misericórdia de Santo Tirso vê com “pavor” a reabertura dos lares, num momento em que ainda não se conhecem os efeitos do desconfinamento na população. A reabertura só deverá por isso acontecer depois de reduzir o risco ao mínimo e definir estratégias que acautelam todas as situações. E será sempre gradual.

Na região do Algarve, a primeira a suspender visitas, a provedora de Boliqueime, Sílvia Sebastião, revela que, após a maratona para isolar utentes e controlar a infeção, com apoio de profissionais de saúde, cedidos pelo ACES e ARS Algarve, “aguardam que tudo acalme e que os resultados sejam todos negativos, não devendo abrir para já as visitas”.

Depois de várias noites sem dormir, para garantir que todos estão em segurança, qualquer medida deverá ser tomada com a máxima cautela, “consoante o nível epidemiológico da comunidade e as condições físicas dos equipamentos”, anui o provedor de Melgaço, que decidiu, com as “10 Misericórdias do distrito não reabrir para já”. Agora que o “inferno” já passou, Jorge Ribeiro encara o futuro com reserva e não esquece, de maneira nenhuma, “a coragem, responsabilidade e espírito de missão das colaboradoras, que não permitiram que faltassem cuidados aos idosos”.

Em fase de rescaldo, as Misericórdias destacam, no balanço dos últimos meses, “o valor da comunidade, dos familiares que aceitaram bem a situação e dos colaboradores que nunca se recusaram a vir trabalhar, no pico do surto”, revela o mesário de Vila do Conde, Rui Maia.

Depois de isolar, proteger e salvar vidas, todos avaliam o novo dia com ponderação num recomeço gradual que permita a adaptação à nova normalidade. Nada voltará a ser como era, dizem-nos em jeito de desabafo. Mas o foco está na qualidade de vida dos utentes que escolheram esta instituição para sua casa.

Reabertura tem de ser um ato de confiança

Para o presidente da União das Misericórdias Portuguesas (UMP), “a reabertura tem de ser um ato de confiança”. Segundo Manuel de Lemos, a retoma de visitas aos lares é “uma excelente notícia”, mas deve o levantamento das medidas de isolamento deve obedecer a alguns critérios.

Na Circular 59/2020, de 12 de maio, o presidente recorda que “as Misericórdias estão, há mais de dois meses, a gerir uma segregação social preventiva de grupos específicos da população, como o das pessoas idosas e o das pessoas com deficiência, simplesmente para as proteger, à custa do enorme sacrifício de tantas centenas de profissionais, sacrificando em simultâneo os afetos entre os utentes e famílias e, num resultado final do qual, legitimamente, todos temos razões para nos orgulhar porque, comprovadamente, salvámos a vida de muitos dos nossos utentes”.

Por isso, Manuel de Lemos defende que a reabertura aos familiares deve ser “cautelosa, para não hipotecar todos os sacrifícios” daqueles que “abdicaram da sua vida pessoal e arriscaram a sua saúde e da sua família” e também “ponderada, porque o risco que existia a 11 de março não se alterou, uma ação precipitada pode inabilitar uma equipa inteira, pode infetar uma estrutura e tirar a vida a um utente”.

Para apoiar as Misericórdias nesta fase de desconfinamento, a UMP preparou um guião para reabertura programada e segura de estruturas residenciais.

Voz das MisericórdiasAna Cargaleiro de Freitas
Ilustração: Paulo Buchinho