Tininha aprendeu a fazer renda antes de conhecer o alfabeto e mantém o passatempo mesmo depois de ter perdido a visão

Clementina da Silva Vieira, carinhosamente tratada por Tininha, aprendeu a fazer renda ainda antes de conhecer o alfabeto ou de saber contar. Tinha “quatro ou cinco anos” quando a tia, com quem vivia, a iniciou nesta arte, que aprimorou com o passar dos anos, os mesmos anos que lhe foram roubando a visão.

Em 2006, cegou totalmente, mas nem assim deixou a renda de lado. Mudou-se, então, para o lar da Misericórdia de Porto de Mós e foi aí que, já invisual, redescobriu o prazer que lhe dá fazer croché. Aos 90 anos, completados em julho último, mostra agora o seu trabalho ao público através da exposição “Croché de visão táctil”, patente até 15 de outubro no Museu Municipal de Porto de Mós, uma iniciativa da Câmara que tem como objetivo “dar a conhecer aos visitantes (observadores) as obras executadas pela autora após a limitação com que vive” há 14 anos.

O primeiro contacto que Clementina Vieira teve com esta arte foi através de uma tia. “Ela trabalhava como telefonista, mas aos domingos costurava e bordava para fora. Para me entreter, sentava-me num banco e ela ensinava-me a bordar”, recorda. O gosto ficou. De tal forma que, quando andava na escola, sempre que podia comprava revistas especializadas para “copiar os desenhos”. Mais tarde, quando deixou os estudos para ajudar no negócio da família, proprietária de uma taberna e de uma residencial no Rossio de Porto de Mós, aprendeu com a mãe a arte de bordar à mão e à máquina, que aperfeiçoou com uma bordadeira de terra.

A paixão acompanhou-a ao longo da vida e já na reforma tornou-se a uma fiel companheira, ainda mais quando começou a perder a visão. “Olhava para a televisão, mas só ouvia. Precisava de algo para me ocupar e distrair a cabeça.” Quando cegou por completo, há cerca de 14 anos, percebeu que, se conseguisse idealizar os desenhos na cabeça, seria capaz de reproduzir os movimentos que executava quando via. Desse trabalho de memória, saem-lhe barcos, cadeiras, mesas, malmequeres e outras flores, chapéus e pequenos sacos que transpõe para o croché.

“Quando se faz isto uma vida inteira, a ideia fica”, diz Tininha, admitindo que, de tempos a tempos, pede ajuda para perceber se está a ir bem. Outras vezes, ela própria descobre pontos mal-executados. Nesses casos, só há uma solução na sua cabeça: desmanchar e voltar a fazer de novo. “Se me engano, não sou mandriona para alagar. Não vejo o resultado final, mas gosto de ficar com a ideia de que fiz o melhor”, diz, reconhecendo que os dedos já não têm a mesma sensibilidade e agilidade de outros tempos, pelo que utiliza agora uma linha mais grossa para contornar essa dificuldade acrescida.

Além de ajudar a passar o tempo, a renda é para Tininha também uma espécie de ‘fisioterapia’, ajudando-o a exercitar os braços e as mãos. As pernas, essas, ainda vão “marchando bem”, exercitadas com os passeios diários que, antes da pandemia, fazia dentro da vila, acompanhada por uma amiga, e que agora teima em manter, embora dentro das instalações do lar.

“Não vendo, tendemos a ficar sentados o dia todo, a ouvir a televisão e as pessoas a falarem. Começamos a pensar em coisas que não devemos. Quando estou a fazer renda, não penso em nada da vida”, diz Clementina Vieira, que, segundo a animadora social da instituição, é uma das utentes mais participativas nas atividades que promovem, nomeadamente nos exercícios de treino de escrita ou nos concursos de cultura geral, de que tanto gosta. “Também faço ditados. Há anos que não leio nada e, às vezes, tenho dúvidas com certas palavras. Também aqui, peço ajuda”, acrescenta D. Tininha, que trabalhou durante 24 anos na Cooperativa Agrícola de Porto de Mós, onde foi escriturária.

A par da renda, bordar é outra das suas paixões, mas essa teve de ser colocada de lado devido à perda de visão. “Para quem não vê, é mais difícil”, alega a bordadeira, que aos 90 anos admite ainda tentar uma incursão pelo ponto de cruz. “Ainda vou experimentar”, diz, resoluta. Para já, continuará a dedicar-se ao croché “até que os braços deixem”.

Arte para além do que é visível

Os trabalhos executados por Clementina da Silva Vieira, conhecida como Tininha, estão exposição no Museu Municipal de Porto de Mós até ao dia 15 de outubro. A mostra “Croché de visão táctil” visa, segundo portal da autarquia, dar a conhecer a “arte como obra para além do visível, onde agilidade das mãos surge como arte empregue nos adornos e utilidade”.

Aprender croché na infância

Clementina da Silva Vieira nasceu em 1930 e tinha cerca de cinco anos quando começou a aprender a arte do croché com uma tia. Os anos roubaram-lhe a visão e em 2006, quando cegou completamente, passou a residir no lar de idosos da Santa Casa da Misericórdia de Porto de Mós. Mesmo invisual, Tininha recorre às linhas e agulhas para passar o tempo e ocupar o pensamento.

Voz das Misericórdias, Maria Anabela Silva