Já depois dos 70 anos, estreou-se também como autor de livros, devido a circunstâncias que lhe limitaram as rotinas, mas não o espírito irreverente. A pandemia de Covid-19 condicionou liberdades, mas proporcionou o tempo e a vontade de registar o legado de uma vida.
Filho de professores, com origens algarvias e minhotas, Rui Sousa Louro cresceu num meio rural marcado pela pobreza e pela fome. Embora fosse um “menino privilegiado”, cedo aprendeu que nem todos nascem com as mesmas oportunidades. “A morna pacatez da minha infância seria perturbada pelos primeiros factos que vieram a moldar a minha consciência social”, escreve referindo-se à chegada das primeiras máquinas agrícolas a Castro Verde, que seriam a causa da fome dos seus “camaradas de escola”. Autodidata e engenhoso, o pequeno Rui surpreendia os colegas de escola com brinquedos feitos de latas de sardinha e caixas de giz, onde colocava rodas feitas de carrinhos de linhas.
Aos oito anos, muda-se para S. Jerónimo de Real, em Braga, onde os avós paternos tinham uma quinta, e deixa para trás a “pacata infância alentejana”, os primeiros amores e os “verdes azulados das searas ondulando ao vento, polvilhadas com a cor rubra das papoilas”. Mudam as cores e os odores, as vegetações e os animais, mas mantém-se a ânsia de conhecer o mundo que o rodeia. Escapulia-se para casa dos caseiros, deliciava-se com as bolas de chouriço e sardinhas e cuidava dos pombos, coelhos e porquinhos-da-índia, que o pai autorizou a criar. Assim decorria a vida no campo quando o “trio de damas” (mãe, avó e tia) decide mudar-se para a Rua dos Chãos, em Braga, onde monta os primeiros kits de carros e aviões, paixão que o acompanha até hoje.
Depois de uma passagem serena pelo Liceu Sá de Miranda, em Braga, integra as fileiras da Mocidade Portuguesa e conclui o curso de Estudos Ultramarinos.
Uma experiência que, durante muito tempo, considerou como “anos negros”, mas que hoje encara de forma positiva por ter permitido “conhecer os podres do regime e desta forma estar mais bem preparado para o combater”. Da juventude guarda memórias de “estudo, mas também de diversão e muita irreverência”. Algumas destas vivências estão associadas ao grupo “Os Irreverentes”, formado por alunos do Liceu Sá de Miranda, com quem partilhou muitas aventuras.
A prática desportiva acompanha-o até hoje, com a caminhada, corrida, natação e artes marciais, mas admite que nada se compara ao fascínio pelos “desportos de ar”. Desígnio que viria a ser concretizado depois se emancipar, na Escola de Pilotagem do Aero Clube de Braga.
Na idade adulta, consagra-se como arquiteto, dedica-se à atividade política e conhece os amores da sua vida, que resultam em casamento (três) ou geram profundas amizades.
No quarto das residências, Rui Louro rodeia-se de tudo o que o faz feliz, os autores que mais o marcaram - existencialistas, neorrealistas e outros -, os animais que sempre o cativaram (tartarugas, aves e peixes) e alguns dos objetos que colecionou ao longo da vida. No apartamento, onde sobra apenas espaço para circular, ainda se dedica à culinária e compilação de receitas.
Ao telefone e nas páginas do livro, Rui Louro revelase um conversador nato, narrador dotado e homem de afetos, com rasgos de humor e ousadia, que vê na família um “legado para o futuro”. E é assim que gosta de ser lembrado. Um esboço inacabado, em permanente busca da verdade. “Na vida não quis muito, mas tive tudo o que pude. Nunca quis ser melhor que os outros, mas melhor que eu próprio”.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas