Com os centros de dia fechados, o serviço de apoio domiciliário é cada vez mais procurado e ganhou uma nova missão: levar um pouco de companhia em contexto de pandemia. Na maioria das vezes, as equipas das Santas Casas de Carrazeda de Ansiães e Chaves são as únicas visitas que os utentes recebem

Nas ruas, não se vê vivalma. Sinal do recolhimento que os novos tempos impõem. Mas há toda uma solidão enclausurada que tem ficado na sombra das medidas de combate à propagação do SARS-Cov-2 em Portugal. São pessoas que vivem sozinhas, sem retaguarda familiar ou com a família ausente, e a quem só o serviço de apoio domiciliário (SAD) consegue chegar. A suspensão do funcionamento dos centros de dia (CD) tornou ainda mais essencial esta valência, que regista mais solicitações.

“O SAD está na linha da frente no suprir das necessidades que se têm feito sentir neste cenário pandémico e dado o evoluir da situação, teremos de equacionar, num futuro próximo, o reforço das equipas com mais meios, equipamentos e recursos humanos”, antevê a diretora técnica do SAD da Misericórdia de Chaves [distrito de Vila Real], Filipa Machado.

Também a Misericórdia de Carrazeda de Ansiães (na foto), no distrito de Bragança, reconhece que “houve muita procura pelo SAD”. “No início, tivemos algumas pessoas que suspenderam por acharem que podíamos levar o vírus, mas agora é o oposto. Precisávamos de poder chegar a mais, mas já trabalhávamos na capacidade máxima e tivemos de encaminhar esses pedidos para outras instituições”, refere a diretora técnica Marina Trigo.

Pese embora se viva em contexto pandémico, Marina Trigo salienta que o SAD já era muito importante antes porque “há muitas aldeias, os transportes não chegam a toda a gente ou quando chegam são escassos e, em alternativa, temos os táxis que nem toda a gente pode pagar”. Assim, o apoio inclui todo o tipo de serviços (compras, pagamento de contas de água e luz) para que os utentes não tenham que sair de casa. “Se são coisas básicas, conseguimos levar até eles”, assegura.

A neblina de sábado, dia 14, esbatia os contornos da carrinha da Misericórdia flaviense. A chave rodou na ignição às 8h para percorrer cerca de 50 quilómetros em asfalto, paralelo e terra batida. As primeiras paragens aconteceram no perímetro urbano para ajudar utentes na higiene pessoal e/ou habitacional. À saída de cada casa, o ritual da troca de avental, mangas de proteção e luvas descartáveis, assim como o uso continuado de desinfetante. “Temos duas equipas que fazem sempre a mesma rota e utilizam a mesma viatura, o que nos permitirá, caso haja algum caso positivo, identificar mais rapidamente os contactos feitos”, explica a diretora.

Ana Santos trabalha há 23 anos na Misericórdia e quando tudo começou foi “muito difícil”. “Se eles estão fechados e se somos nós que entramos e saímos, a ideia de levar o vírus era terrível, psicologicamente.” O mesmo se aplicava a cada regresso ao seu lar: “era medo tanto de levar para um lado como para o outro”.

Com capacidade para 125 utentes, o SAD da Misericórdia de Chaves abrange 18 freguesias, o que rende mais de 700 quilómetros a cada semana. Foi também a alternativa possível para os 32 utentes do CD. Ana reencontra-os quando vai fazer a distribuição das refeições e não tem dúvidas que “estão mais sozinhos”. “Estão fechados em casa e sem nada para fazer. No CD, estavam mais acompanhados, conversavam, jogavam às cartas, tinham uma rotina diferente.” Para não descurar a saúde mental, a diretora técnica ressalva que foi reforçado o contato telefónico com utentes e famílias para prevenção de estados depressivos e/ou de ansiedade.

Fernando Silva tem 67 anos e era utente do CD “há muitos anos”. “Sou o segundo utente mais antigo”, diz com orgulho. Desde março que viu os seus dias mais vazios: “conheci lá muito boa gente e faz-me falta esse convívio. Estou mortinho que reabra”, confessa. O tempo era passado entre jogos de cartas, canções e outros passatempos. “De vez em quando organizavam excursões e também alinhava”, acrescenta. Virem trazer-lhe o almoço é “uma ajuda a 100%”: “elas são a minha família e a Misericórdia é a minha casa há 30 anos”.

Os 19 anos de trabalho na Santa Casa permitem a Marta Pipa constatar que os utentes do CD “estão mortinhos por regressar, porque lhes falta esse convívio e a animação. É também por isso que estão sempre ansiosos que a gente chegue”.

Conforto anímico à boleia do SAD

Mal a carrinha apita, o utente sabe que tem direito a “um bom dia e uma pequena conversa amiga”. “São estas pessoas mais idosas e que não têm ninguém que são as mais afetadas”, salienta Marta.

É disso exemplo Rodrigo Dionísio, residente na aldeia de Faiões. “O apoio da Santa Casa é o melhor que pode haver, porque estou sozinho, a minha esposa está nos cuidados continuados e se não fossem elas...” As lágrimas rolam pelo rosto de 72 anos. Está cansado que o dia a dia seja “aqui fechado”. O cão Fifas aproxima-se e o dono reconhece que lhe faz companhia “e não é pouca”. Vai-se entretendo na horta e já nem os vizinhos avista porque “agora está tudo em casa”. “Se for até ao fundo da rua [30 metros], não vejo ninguém.” Com uma filha a morar noutra cidade, Rodrigo “só tem a dizer bem” de Marta e Ana, que chegam “sempre bem-dispostas e são impecáveis”. “Temos de nos proteger enquanto pudermos, mas era bom que isto desaparecesse e acabasse de uma vez”, desabafa.

Com destino à próxima casa, a carrinha levanta o pó do caminho. É no meio da horta que encontram Alice Alves, 68 anos. “Calha bem trazerem-me o almoço, porque ao menos sempre tenho quem me visite e se me encontrar doente, tenho alguém que me ajude.” Alice é viúva, não teve filhos e não tem vizinhos: “tenho telefone, mas não recebo chamadas e hoje ainda não tinha falado para ninguém”. É por isso que a angústia lhe toma conta da voz: “a gente está sozinha e cisma em tudo, põe-se um nó na garganta e só me dá para chorar.”

Também Hernâni Santos, 61 anos, mora sozinho noutra aldeia. Da marquise, vê as funcionárias da Santa Casa, que chegam para limpar o quarto e a casa de banho. “Elas têm todos os cuidados e são uma grande ajuda”, sublinha.

Os dias são passados sem companhia: “fico aqui sentado porque não posso ir para lado nenhum”. Tem medo do vírus, “pois claro”. Por isso, nunca mais voltou ao café e só sai, às vezes, para ir ver a mãe. “Faz-me muita falta…vejo-me sozinho e, depois, vêm-me as lágrimas aos olhos. Choro e já não como nadinha”, revela. Nesse momento, a voz de Marta chega do quarto: “oh patrão, não fale mal de nós” e vê-se, pela primeira vez, o sorriso de Hernâni.

Podia pensar-se que o isolamento é mais acentuado nos meios rurais, mas também acontece na cidade. “Há muitas pessoas sozinhas, em que as únicas visitas que recebem somos nós. Por isso, temos de ser fortes e ainda mais meigas. Temos de lhes transmitir a confiança que isto vai passar”, sentencia Marta.

Resposta transversal em lugares recônditos

Fornecimento de refeição, higiene pessoal e cuidados de imagem, tratamento de roupa, assistência medicamentosa, transporte a consultas já faziam parte da matriz do SAD da Misericórdia de Chaves, a que se junta outra exigência: apoiar pessoas que testaram positivo à Covid-19 e que estão em isolamento, sem retaguarda. “Necessitam de apoio na aquisição de produtos, pagamento de serviços ou fornecimento de refeições”, frisa Filipa Machado.

Os almoços (e muitas vezes com reforço para o jantar) viajam na bagageira da carrinha e não sobra um centímetro. A distribuição começa às 12h15. Na aldeia de Aregos, António Graça, 85 anos, vai avistando a estrada. Na mão, segura o comando do portão. Vive em casa do filho, com a esposa de 92 anos. “Venho até aqui à cancela e torno para cima, mas tenho saudades de ir para o CD e ver os colegas”, conta. Passava melhor o tempo, porque “agora é como se estivesse na cadeia, mas tem de ser”.

Em Carrazeda de Ansiães, nos 100 utentes apoiados pelo SAD só há cinco casais. “São pessoas entre os 70 e os 85 anos, que toda a vida viveram na aldeia (embora haja alguns que vieram do estrangeiro) e da agricultura. Os filhos estão fora, muitos no estrangeiro e outros fora do concelho”, traça Marina Trigo.

É o caso de António Vieira. Mora em Castanheiro do Norte e soma 88 anos. Os quatro filhos e os três netos estão em Paris, mas todos regressaram no Verão. As funcionárias limpam-lhe a casa e trazem o almoço. “É uma ajuda boa, mas também sei esfregar a casa que a minha mulher ensinou-me. Mas elas sempre falam comigo e às vezes têm de ir embora se não a conversa nunca mais acaba”, diz. Passa os dias dentro de portas, a ouvir o rádio. Sai para passear “um bocadinho” até ao fundo da rua, sem risco de encontrar vizinhos porque “não há nenhuns”.

Além de passarem a apoiar os 10 utentes do CD, a prescrição de medicamentos afigurou-se, também, como uma prioridade para o SAD. “Como estas pessoas não sabem ler nem escrever, eu peço as receitas por email. Essa é uma situação nova, porque a medicação já levávamos”, observa Marina.

Quinze funcionárias e cinco carrinhas para percorrer, diariamente, 25 aldeias. O conta-quilómetros soma 1600 quilómetros todas as semanas. “Gasta-se quase tanto tempo para chegar do que a trabalhar e quando neva temos de usar jipes para levar a alimentação a todo o lado”, sublinha o provedor Ricardo Pereira.

Chegar à residência de Carlos Veiga, 66 anos, é quase uma saga. Desligado o motor, é preciso caminhar uns 10 minutos, atravessando um caminho murado (agora quase impedido com pedras arrastadas pelo mau tempo), uma horta, vencer dois desníveis e bater à porta. “Estou aqui sozinho e na aldeia, quase não se vê ninguém, mas já antes não se via. Elas veem o que é preciso limpar e conversam comigo”, relata. Contudo, as marmitas, com alimentação de dieta por causa dos vários problemas de saúde, são deixadas numa caixa de correio à beira do caminho.

Com quatro filhos e cinco netos, Carlos fala sempre com eles por telefone. Os filhos que estão na Suíça vieram no Verão, mas “estivemos todos longe uns dos outros”. “Eles tinham medo de me pegar alguma coisa ou eu a eles. Não nos beijámos, só falámos e mais nada.”

Na manhã de 21 de novembro, um dos primeiros destinos foi Fiolhal, uma aldeia sobranceira ao Douro, à qual se acede por um estreito caminho. É aí que visitam Elisa Queirós. Chamam-na mal começam a subir as irregulares escadas de pedra. Entram e, dali a momentos, a utente aparece, apoiada numa bengala, e vem sentar-se ao lume. “São boas pessoas. Limpam e fazem a cama. Eu ainda tomo banho sozinha, mas fico muito estafada e qualquer dia tenho de perder a vergonha e pedir-lhes ajuda”, confidencia.

Aos 87 anos, Elisa já não sai. Vive com o filho de 64 anos, que se encarrega das refeições, e tem outro que mora do outro lado da rua, mas “evitamos comer aqui todos juntos”. A filha e o neto “não vêm amiúde porque têm medo” e quando vêm procuram manter alguma distância. “Eu sei que é para minha segurança, mas fico triste por não poder abraçá-los”, diz, sem evitar as lágrimas.

Na rua paralela, a vizinha Filomena Magalhães, 73 anos, é um epicentro de energia que varre a solidão. “Elas fazem-me a caminha, lavam-me a roupinha. São umas jóias de meninas, eu queria-as cá sempre, porque gosto muito delas.”

Seguimos rumo a mais histórias. É no sótão que Guilherme Mesquita, 80 anos, vai esculpindo o vagar dos dias. É com orgulho que mostra o seu relicário, até porque “é bom falar com as pessoas”. Antes ia ao café, que fica noutra aldeia: “desde que começou o vírus nunca mais fui e apanhei um vício de estar aqui a fazer artesanato”. Vive sozinho e tem um filho emigrado: “sou o único que vive nesta rua e só recebo estas visitas. Às vezes, lá vejo um vizinho passar no caminho.”

Em Misquel, moram Teresa Carvas, 79 anos, e Durval Pinto, 82 anos. Têm três filhos, mas estão sozinhos. “Olá coração”, é assim que Lurdes Vargas cumprimenta o chefe da família, que de imediato lhe sorri. Nas mãos, leva alheiras sem picante, a pedido de Teresa. “Elas trazem animação e não podíamos estar melhores”, reconhece a septuagenária. Agora, não recebem visitas, porque o vírus espreita em localidades próximas que Teresa bem vê nas notícias: “ai se tenho medo…eu sou crónica, tomei logo a vacina.”

Mãos que lavam, vestem e mimam

“Nós estamos a praticar o bem, por isso não temos de ter medo e tudo vai correr bem connosco.” Esta é a filosofia de Lurdes, ternamente apelidada, pelas colegas, de “criqueira” [“afável” na gíria regional]. Sobra-lhe um instinto quase maternal: “é como se fossem meus filhos. Sei que são adultos e há outra forma de falar, mas o carinho é o mesmo. A forma de fazer higiene, o cuidado com que se deve pegar é igual às nossas crianças”.

Estas mulheres percorrem estradas e ruelas, abdicam de datas especiais com a família por causa dessa geografia sentimental que tem como coordenadas o bem-estar físico e psíquico dos utentes. “Chegar e ver os sorrisos dos nossos velhinhos é a nossa bênção”, atesta Sónia Almeida.

Tentam dar o melhor de si e “o apoio necessário”. “Muitos deles estão sempre à espera da nossa chegada. Uma pessoa tenta sempre conversar com eles, falar de outras coisas para os animar”, refere Cristina Duarte, funcionária da Santa Casa há 17 anos. Ainda há utentes que lhe dizem “por que é que tem a máscara? Tire que aqui não há disso”. “Mas temos de lhe explicar que é para o bem deles e do nosso”, frisa.

Além das máscaras, a pandemia trouxe novas regras de distanciamento e “nota-se a tristeza nos olhares dos utentes, porque sentem a necessidade do toque”. “Eles estavam tão habituados a que chegássemos e abraçássemos e beijássemos, depois, de repente, só há afastamento e é muito complicado”, reconhece Lurdes. É essa ausência de contacto que mais lhe custa, porque “eles precisam muito disso”.

Os utentes do SAD anseiam tanto pela sua visita como as estimam. “Eles são um bocadinho nossos. É como se fossem a nossa família e eles também nos têm como isso”, remata Sónia.

Voz das Misericórdias, Patrícia Posse