Qual é o melhor lugar para envelhecer? Para muitos a resposta é “em casa”, no lugar que conhecem e onde estão as referências afetivas, mantendo a continuidade no ciclo de vida. Mas, para tal são necessários recursos na comunidade que garantam segurança e autonomia, cuidados de saúde, atividades de lazer e socialização. Para apoiar o envelhecimento em casa e na comunidade estão disponíveis, em todo o país, 2755 serviços de apoio domiciliário (SAD), geridos por Misericórdias (408, 15% do total) e outras instituições, que apoiam mais de 77 mil pessoas (18% nas Misericórdias).
No terreno, as equipas têm a perceção de que os serviços básicos – alimentação, tratamento de roupa, higiene pessoal e habitacional – já não respondem a todas as necessidades, enfatizando os resultados do estudo conduzido pela União das Misericórdias Portuguesas (‘MaiSAD’, 2022), no qual se defende um modelo mais flexível e a revisão dos acordos de cooperação em vigor.
Em Portugal, a taxa de ocupação do SAD, a nível nacional, ronda os 66%, enquanto a de lar é de 92,5% (Carta Social, 2023). O que significa que uma em cada três vagas de SAD não está a ser ocupada enquanto nos lares temos lista de espera em muitos locais. António Fonseca, docente da Universidade Católica Portuguesa e investigador na área do envelhecimento, considera a situação “paradoxal”: “Será que as pessoas já desistiram de viver em casa?”.
Para o vice-presidente da UMP, Carlos Andrade, “a maior explicação é que a resposta dada pelo SAD não é adequada às necessidades porque se limita, em muitos casos, a soluções de alimentação e higiene, cinco dias por semana, o que é inaceitável porque há pessoas que precisam de um acompanhamento permanente e estão fechadas em casa, portanto a ideia de que o SAD não responde porque as pessoas estão sozinhas e isoladas é real”. Neste contexto, é “preciso mudar o paradigma, incluindo a saúde, a tecnologia e a comunicação. Ou damos este salto ou cada vez mais pessoas se sentirão abandonadas em casa sem conseguir sair”.
Entre as necessidades não respondidas pelo atual modelo, as Misericórdias e a União identificam, além dos cuidados de saúde (enfermagem, psicologia, fisioterapia, terapia ocupacional etc.), a prestação de serviços ao final do dia ou durante a noite, mais tempo no domicílio, atividades de socialização e comunicação entre pares.
“Os idosos até podem ser autónomos e funcionais durante o dia, mas à noite o SAD já não passa e isso é uma grande angústia para as pessoas e para os filhos”, relata a diretora dos Serviços de Ação Social da Santa Casa de Beja, Francisca Guerreiro, adiantando que tentam colmatar esta solidão e necessidade de vigilância com teleassistência, além da rede de entreajuda e voluntariado, que procuram dinamizar através do Banco de Tempo e projeto ‘Envelhecer Ativo’ (ver caixa).
O acompanhamento noturno é assegurado de forma residual por algumas Misericórdias (Almada e Oliveira de Azeméis, até às 23 horas, Setúbal, em regime de chamada, etc), estando a ser preparada a sua implementação na Batalha. “Queremos alargar o horário para acompanhar os utentes durante o jantar e na hora de deitar, mas ainda estamos a ver como operacionalizar para aceder a financiamento”, revelou a diretora de SAD, Lina Quitério. Por sua vez, em Castanheira de Pera, a responsável de SAD, Clara Simões, considera que “o ideal seria uma cobertura de tempo mais alargada, ou parcialmente noturna, mas isso implicaria mais apoios do Estado e eles não existem”. Neste contexto de isolamento, fraca rede de vizinhança e familiar, as famílias têm de se reorganizar ou optam pelos lares onde a segurança é maior”, mas as estruturas residenciais estão “sempre lotadas e não dão resposta à procura”.
Quanto ao acesso a cuidados de saúde, o hospital mais próximo dista a 60 quilómetros (Coimbra) e o centro de saúde está sem médico pelo que as pessoas recorrem a transporte privado para se deslocar a Coimbra ou procuram a clínica da Santa Casa de Castanheira de Pera. No SAD, os serviços de fisioterapia e enfermagem, incluídos no projeto premiado em 2017 (BPI Sénior), deixaram de ser prestados em 2022 pela dificuldade de contratação.
A nível nacional, há a expectativa de integrar a saúde no apoio domiciliário e tem sido anunciada pelo governo, desde 2023, a intenção de criar avisos para uma nova geração de SAD 4.0, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência. Ainda sem data de início, o novo projeto foi anunciado pela ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, no dia 15 de setembro. “Este projeto de apoio domiciliário mais saúde vai avançar como projeto-piloto brevemente”, com o objetivo de aliviar “internamentos sociais” nos hospitais, adiantou ao jornal Público, sem indicar quem vai coordenar nem onde vai arrancar.
A integração da saúde no SAD é uma meta antiga, concretizada apenas localmente sob a forma de um acordo designado de apoio domiciliário integrado (ADI). “Na prática, já aconteceu com experiências de ADI que acabaram da mesma forma: a saúde deixou de aparecer porque depende de profissionais que o Ministério da Saúde não tem”, recordou Carlos Andrade.
Repensar assistência social e de saúde
Lia Fernandes, psiquiatra, investigadora do CINTESIS e presidente do colégio da Competência de Geriatria da Ordem dos Médicos, considera “fundamental esta conexão entre os serviços sociais e de saúde para evitar idas desnecessárias às urgências, prevenir descompensações de doenças crónicas e ter as pessoas mais tempo em casa”. Neste contexto, assume ser necessário “modificar a estrutura e repensar a assistência social e de saúde. A tríade enfermeiro, médico e assistente social é obrigatória no atendimento dos idosos e exige os tais cuidados de continuidade e proximidade”.
O que acontece, na realidade, é que “não há cuidados médicos e de enfermagem preparados e na quantidade desejável para ir a casa das pessoas”. Como tal, defende que “em vez de andar a criar modelos alternativos e estudos piloto, temos de reforçar o que existe. As equipas comunitárias, nos centros de saúde, têm funcionado muito bem. São é poucas”.
Localmente, instituições como as Misericórdias vão ensaiando experiências alternativas às respostas tipificadas, com criatividade e conhecimento da realidade, contrariando a “visão rígida do Estado”. Muitas delas são apoiadas por programas como o Gulbenkian Cuida, Gulbenkian Home Care, BPI Seniores, BPI Fundação La Caixa e Portugal Inovação Social. Mas, mesmo nestes casos, verifica-se uma “quebra na continuidade do financiamento que não permite dar sequência à inovação”, alertou o responsável da UMP.
Ciente desta realidade, o diretor do programa Sustentabilidade e Equidade da Fundação Calouste Gulbenkian, Luís Jerónimo, defendeu, na apresentação final dos projetos apoiados pelo Gulbenkian Home Care (2023-24), em dezembro de 2024, a revisão dos “modelos de financiamento das políticas públicas para poder introduzir como financiável este tipo de abordagens que fazem a diferença”.
Um destes 15 projetos é o ‘Sorrisos ao Domicílio’, implementado pela Misericórdia de Almada, que se confronta com esse problema. “De um lado temos a Gulbenkian a distinguir-nos entre os melhores. Do outro temos um acordo de cooperação fechado, com vários avisos de um SAD 4.0, que nunca chega”, lamentou a diretora coordenadora técnica, Sofia Valério.
E há abertura do lado do Estado para rever esse modelo de financiamento? “Não há porque no dia em que incluir saúde, tecnologia, segurança e comunicação vai tornar-se muito caro e não há dinheiro para isso. As comunidades sabem quais são as suas necessidades e devem fazer o desenho dos serviços, mas o sistema está bloqueado por esta rigidez”, admite Carlos Andrade.
Por sua vez, no local as entidades sentem que não são ouvidas e que a “rede social não tem verdadeiro impacto na implementação de políticas públicas do Estado central”, partilhou a 11 de setembro Carolina Vilas Boas, técnica do município de Almada, no seminário ‘Novas Necessidades, Novos Desafios, Novas Respostas’.
Qual é o melhor lugar para envelhecer? “Num lugar onde possam ser satisfeitas as nossas necessidades, idealmente em casa, sim, mas se não conseguir sair de casa não é diferente de viver em reclusão”, reformula António Fonseca. O caminho é “perceber de que forma a comunidade está preparada para acolher as necessidades do envelhecimento”, considerando a habitação, serviços essenciais (transportes, saúde, compras, lazer) e a participação em funções socialmente reconhecidas.
As pessoas devem ser livres de escolher o lugar onde querem envelhecer, mas há lugares mais preparados que outros. Segundo o vice-presidente da UMP, em muitos países da Europa “são as autarquias que ajudam a adaptar as habitações dos idosos, com obras nas casas de banho e acessibilidades. Em Portugal isso ainda não existe e é uma condicionante negativa”.
Portugal está entre os países da União Europeia onde o envelhecimento é mais acelerado: em 20 anos a percentagem de pessoas com 80 ou mais anos subiu de 3,8% para 7%. Especialistas da área defendem o apoio domiciliário como pilar nas políticas de envelhecimento, mas é preciso garantir que as pessoas envelhecem com dignidade e vida saudável e que os projetos no terreno têm condições de sustentabilidade a longo prazo.
Um modelo possível, para garantir esta continuidade, pode ser o das parcerias com “contratos de médio prazo em que o SNS contrata capacidade privada para a prestação de serviços que não tem a possibilidade de fornecer”, adiantou Pedro Pita Barros, especialista em economia da saúde e autor do estudo ‘Inovação no Serviço de Apoio Domiciliário para Pessoas Idosas’, apresentado na Gulbenkian, a 22 de setembro.
Participar de forma ativa na comunidade
O projeto ‘EnvelheSer Ativo’, premiado pelo BPI Fundação La Caixa Sénior 2024, articula-se com o SAD da Misericórdia de Beja, criando momentos de estimulação motora e cognitiva, dentro e fora de casa. Além do transporte ao exterior (compras, consulta, lazer), a iniciativa assenta no voluntariado e na dinamização de atividades pelos próprios idosos, assegurando ainda a capacitação de cuidadores e reparações no domicílio.
Voluntariado faz a diferença na rede de apoio
O projeto ‘EnvelheSer Ativo’, premiado pelo BPI Fundação La Caixa Sénior 2024, articula-se com o SAD da Misericórdia de Beja, criando momentos de estimulação motora e cognitiva, dentro e fora de casa. Além do transporte ao exterior (compras, consulta, lazer), a iniciativa assenta no voluntariado e na dinamização de atividades pelos próprios idosos, assegurando ainda a capacitação de cuidadores e reparações no domicílio.
Inovação é condicionada por financiamento
Em 2020, o programa ‘Gulbenkian Cuida’ apoiou 16 Misericórdias com projetos de SAD que incluem serviços de saúde, transporte ao exterior, ajudas técnicas, etc. Findo o financiamento, alguns projetos continuam com uma redução nas ações e/ou equipa, como Venda do Pinheiro, que mantém deslocações ao exterior e reparações em casa, enquanto Sines presta cuidados de imagem e estimulação cognitiva.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas
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