A Misericórdia de Seia está empenhada em melhorar qualidade de vida e adiar a institucionalização de quem sofre de demências

O projeto chama-se ‘VAMOS – Sentir, Estimular e Autonomizar a Vida’ e é dirigido a 35 pessoas, a quem foi identificado algum tipo de demência, e 15 cuidadores informais. Não são utentes de nenhuma valência da Santa Casa da Misericórdia de Seia, mas os destinatários de uma nova valência que, na prática, é criada com este projeto: cuidar no domicílio de pessoas que precisam de apoio devido aos diferentes graus de demência identificados.

O projeto é fruto de uma semente lançada nos anos 2013/2014 quando a Misericórdia de Seia participou no projeto VIDAS, promovido pela União das Misericórdias Portuguesas. “Participámos porque já nessa época sentíamos necessidade de intervir nesta área, especializarmo-nos neste tipo de serviço”, explica o provedor, Paulo Caetano. “Selecionámos algumas das pessoas que tiveram formação em Fátima, na unidade de cuidados continuados Bento XVI e avançámos com uma candidatura que foi aprovada no âmbito da Iniciativa de Inovação e Empreendedorismo Social”, que comparticipa 70% do projeto, no valor global de 180 mil euros. O objetivo é “de uma forma diferenciadora, dar melhor qualidade de vida e acompanhamento a vários níveis e institucionalizar o mais tarde possível”.

Para isso foi criada uma equipa multidisciplinar, constituída por uma neuropsicóloga clínica, uma psicomotricista, um enfermeiro, um terapeuta da fala, uma nutricionista e uma assistente social, que está no terreno há dois meses.

“Intervimos de forma multidisciplinar, fazemos a sinalização das pessoas, avaliamos a situação e atuamos consoante a necessidade das pessoas.” Explica a coordenadora do projeto, Mariana Paixão. Dito assim parece simples, mas no terreno a equipa deparou-se com outras variantes que ultrapassam o processo técnico.

O verbo “sentir”, que dá nome ao projeto, alterou não só os planos como os timings. “Nós pensávamos intervir com a família num plano paralelo ou secundário, mas tem de ser o contrário, temos de trabalhar com a família e com o cuidador informal, ou com vários que, em muitos casos, estão associados apenas a uma pessoa.”

Por outro lado, acrescenta a neuropsicóloga clínica que coordena o projeto, foi preciso “desconstruir a ideia de que com esta pessoa vamos avaliar, construir um plano e intervir, porque para avaliar tenho de conhecer dimensões que, se não forem bem avaliadas, pode não correr bem”.

Até agora tem corrido bem. “As pessoas tem-nos ouvido, acompanhado, temos sido bem-recebidos, mas desconstruiu a nossa ideia de timing de intervenção, ou seja, será que é já o timing ideal para intervir? Precisamos de nos envolver, quer queiramos quer não.”

A equipa não é acionada toda em simultâneo e, para já, sai duas vezes por semana, a par dos contactos telefónicos diários para acompanhamento. “É importante percebermos como acorda, se se vestiu sozinha, se escolheu a roupa”. A ideia é manter a qualidade de vida, promover a autonomia e melhorar as competências de acesso a cuidados de saúde, “orientando a família, fazendo a ponte com os médicos que os acompanham”.

Há um sem número de ações que não cabem na métrica dos planos, mas que já têm um indicador de avaliação e incentivo, que lhes chega das famílias. “Nós ainda sentimos que não fazemos nada, mas quando as famílias nos dizem que este serviço era o que precisavam e que é um olhar diferente para os pais”.

O projeto olha também de forma diferente para os cuidadores que precisam de muito mais do que capacitação para lidar com as pessoas, muitas vezes marido e mulher, que já perderam como companheiros e que agora não podem perder de vista “é que ficar sem a pessoa fisicamente é uma coisa, mas perdê-la psicologicamente, emocionalmente, é outra coisa, muitos deles perderam a pessoa que os acompanhava, que os ouvia”.

A sobrecarga que existe, tanto física como psicológica, leva a que possam mais facilmente desenvolver uma demência. “Por vezes, um cuidador está a precisar de mais intervenção do que a pessoa que está a cuidar.”

O projeto tem a duração de três anos, mas a Misericórdia de Seia já está a pensar no futuro e decidiu avançar com a sua continuidade, criando o Campo dos Sentidos, que pretende ser um espaço, com um edifício e uma envolvente que permita trabalhar com estas pessoas, não só no domicílio. “É algo diferente, vai ter uma base multissensorial, ligada à terra, com jardins sensoriais e espaços físicos de intervenção, onde os utentes terão uma ocupação dirigida e especializada”.

Um espaço de encontro e partilha também para os cuidadores, um espaço que vai envolver a comunidade com a realização do mercado dos sentidos.

“Pretendemos fazer um mercado dos sentidos, que é o fruto do que ali for plantado, pretendemos que eles próprios vendam, não com o objetivo do lucro, mas de envolver a comunidade, promover atividades que estimulem e lhes permitam ter a autonomia, envolvendo também os cuidadores.”

Explica o provedor que já tem o projeto de arquitetura. “Um espaço que privilegia a luz natural, a amplitude de áreas e a estimulação sensorial através de elementos naturais”, um edifício que tira partido da sua localização e exposição solar e que “partiu de uma reinterpretação da imagem dos celeiros tradicionais”, pode ler-se na descrição do projeto da autoria do arquiteto Mário Melanda, e que foi reconhecido internacionalmente pela DNA Paris Design Awards nas categorias de “Green Architecture” e “Small Scale Project”.

Um projeto que ainda só está desenhado e já é um vencedor. “Dá uma boa esperança neste trabalho que estamos a fazer, é motivador”, diz o provedor da Misericórdia de Seia que quer passar o projeto do papel para o terreno dentro de um ano, apesar da falta de apoios e incentivos para projetos, físicos ou imateriais, na área das demências.

“Esta é uma área que não está tipificada, por isso nós estamos a fazer o caminho das pedras, dificulta candidaturas, licenciamentos…”. Dificuldades que não vão ser entraves ao desenrolar do projeto que pretende evoluir para uma Academia de Demências. “Estamos a criar uma bolsa de investigação nesta área para juntarmos a parte prática com o conhecimento científico para começarmos a dar corpo a esta academia, vai levar alguns anos a ter a sustentabilidade científica e financeira.”

Paulo Caetano admite que o “caminho de pedras” não vai ser fácil, mas na Serra da Estrela, as pedras transformam-se em monumentos naturais.

Voz das Misericórdias, Paula Brito