Exposição no Museu de São Roque deu vida ao património imóvel histórico a partir de um diálogo entre os edifícios, objetos e histórias.

O que têm em comum o antigo Quartel do Rio Seco, a Igreja da Conceição Velha e a Igreja da Misericórdia de Melgaço? São edifícios intervencionados pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) em destaque no Museu de São Roque por ocasião do Ano Europeu do Património Cultural. Organizada em três núcleos, a exposição “Património, Memória e Inovação” associou a cada edifício, um objeto e um apontamento da sua história, no âmbito de um investimento da SCML na reabilitação do património, superior a 65 milhões de euros.

A partir de uma seleção de peças pouco conhecidas, provenientes das reservas da SCML e de outras dez Misericórdias apoiadas pelo Fundo Rainha Dona Leonor (FRDL), a equipa de comissários deu vida ao património imóvel histórico a partir de um diálogo entre os edifícios, objetos e histórias em torno deles.
“É uma exposição de histórias que são ilustradas tanto pelos edifícios que lhes servem de palco como pelos objetos, nem sempre delas provenientes. São peças que num grande museu poderiam não estar expostas, mas que associados a esta carga imaterial readquirem peso e importância”, refere João Miguel Simões, técnico da direção de cultura da SCML. 

De Melgaço a Évora, as dez Santas Casas apoiadas na recuperação das suas igrejas, no âmbito do FRDL, foram convidadas a escolher uma peça do seu acervo para integrar a exposição. “São peças que falam sobre as obras que as Misericórdias fazem pelas comunidades e sobre o espírito e o comando que conseguiram transportar e aplicar estas obras ao longo de cinco séculos”, explica Inês Ponce Dentinho, membro do conselho de gestão do FRDL, que tem acompanhado as Misericórdias no processo de reabilitação dos imóveis. 

Tratam-se de peças simbólicas que, segundo a comissária da exposição, representam várias dimensões de atuação das instituições, desde o “conforto espiritual dos enfermos” através dos santos-óleos de Coruche, passando pela organização da procissão do Senhor dos Passos, em Abrantes, aos cuidados de saúde prestados pela rede hospitalar das Misericórdias (receituário de Alenquer). 

Noutro expositor, o livro de atas de Buarcos (1851-1866) lembra o rigor na gestão de receitas e despesas e a vara do provedor (Évora) simboliza o “apoio do caminheiro nas suas longas tribulações”. De Montemor-o-Novo, chegou ainda uma imagem de Santa Ana (século XVII), padroeira dos “moços solteiros desta villa”, a quem pediam “bom casamento”.

A dimensão espiritual das instituições está presente em objetos tão diversos como as coroas do Espírito Santo, da qual a Misericórdia de Tomar é guardiã e fiel depositária, e a tela (ex-voto, do Museu da Misericórdia da Ericeira) mandada pintar por sobreviventes de um temporal no mar da Ericeira, em 1847, dedicado ao milagre de Nossa Senhora do Livramento. 

Nalguns casos, as peças em exposição são inéditas ou estão a ser vistas pela primeira vez em anos, graças a descobertas feitas durante as obras de restauro. É o caso da bandeira real de Melgaço, descoberta numa arrecadação durante uma visita técnica do FRDL, e do primeiro compromisso impresso desta Misericórdia, com data de 1516. Para celebrar esta descoberta, a tela setecentista em avançado estado de degradação foi recuperada mesmo a tempo de inaugurar o terceiro núcleo da exposição. 

Por ?outro lado, na Lourinhã, exames realizados à tinta da escrivaninha-tinteiro do definitório permitiram apurar que a receção das pinturas do Mestre da Lourinhã e de Salzedo, ex-libris da igreja, foi “lavrada em ata por pena molhada neste objeto, em 1857”.

As histórias multiplicam-se em torno dos objetos iluminados nas vitrines, constituindo um mosaico de apontamentos da vida social, religiosa e cultural do país. Citando um poema de Jean Paul Sartre, que guia a estrutura narrativa da exposição, Gonçalo de Carvalho Amaro, técnico da direção de cultura da SCML, refere que “o mais importante, como nas pessoas, é o seu conteúdo. E nós preocupamo-nos com isso mais do que com o conceito de beleza estética. O valor de um objeto é inerente ao ser humano e a uma comunidade, não nasce com ele”. 

A carta régia de doação da antiga Casa Professa de São Roque à SCML, o conjunto de duas iluminuras persas do século XVIII, os fragmentos de cerâmica e machados de pedra polida (IV milénio a.C, neolítico final), descobertos no Antigo Quartel do Rico Seco, e um estudo de Eduardo Malta, para um retábulo a expor na Exposição do Mundo Português (1940), foram outros dos objetos em destaque na galeria de exposições temporárias do Museu de São Roque.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas