Hugo Guerreiro, diretor do Museu Municipal e responsável técnico pela candidatura à UNESCO do figurado de Estremoz, em entrevista ao Voz das Misericórdias.

Qual é a origem dos bonecos de Estremoz?

Os bonecos remontam ao século XVIII, eventualmente ao século XVII, e têm origem na necessidade espiritual do povo que queria ter os santinhos da sua predileção em casa para orar, mas não tendo os meios financeiros para adquirir uma figura em madeira ou mármore recorreu ao recurso mais natural e barato que há aqui em Estremoz, o barro. O mais curioso é que teve origem nas mulheres, era trabalho feminino, numa altura em que a condição feminina era desvalorizada, nem era considerado um ofício, mas sim uma curiosidade, arte menor. Não era referido em parte nenhuma, era uma arte do povo para o povo, mas de tal maneira importante que em 1836 havia mais oficinas de figuras do que de olaria.

Quais os temas mais representados no inicio e quais os mais populares neste momento?
Tal como na acontece na coleção do padre Mário Aparício Pereira, as temáticas religiosas são as predominantes, seguindo-se duas grandes figuras que são embaixadoras do figurado hoje: a Primavera e O Amor é Cego. Numa primeira fase eram as temáticas religiosas e depois as mais profanas, hoje é um misto, de acordo com gosto pessoal. Vendem-se muito as Nossas Senhoras, de diversas evocações, e a partir de setembro só se produzem presépios. Temos um presépio característico, só nosso, de altar ou de trono, que está nos principais museus de antropologia do mundo.

Quantas figuras estão inventariadas?
O núcleo tem 90 peças, depois há muitas encomendas, que não vingam como figuras que os artesãos consideram como fazendo parte da tradição. Há figuras realizadas por devoção pessoal ou por gosto do colecionador, mas o núcleo base são essas 90.

Neste momento, quem se dedica a modelar os bonecos?

Irmãs Flores, Ricardo Fonseca, Fátima Estróia, Isabel Pires, Jorge da Conceição, Duarte Catela, no Algarve temos dois estremocenses. A Isabel Pires tem a nora a aprender com ela, as Irmãs Flores têm o Ricardo Fonseca e acredito que vão aparecer mais pessoas. Neste momento, há mais gente a querer aprender do que a querer ensinar. Percebo que haja artesãos que não queiram partilhar o seu saber com qualquer um, mas acredito que em virtude das encomendas eles vão ter de abrir portas.

Já temos, portanto, gerações mais novas a trabalhar nesta arte.

Assistimos a uma renovação. O nosso principal objetivo com esta candidatura não foi fazer com que o boneco esgotasse nas lojas, foi a renovação geracional dos artesãos e perpetuar a arte e acho que conseguimos isso. Tenho particular orgulho do que foi conseguido, sem a criação de lobbies, sem equipas multidisciplinares caríssimas e sem projetos financiados pela União Europeia, foi tudo feito com a prata da casa.

Como foi possível apresentar uma candidatura desta envergadura com uma equipa tão pequena?

Estes processos são caros e morosos e nós fizemos tudo com a prata da casa, um museu e município pequeninos, com a colaboração de todos, artesãos e sociedade estremocense, conseguimos este feito notável, de classificar o primeiro figurado do mundo. Portugal é um país de cerâmicas e esta classificação permite olhar para o figurado não tanto como “handcraft” turístico, mas como algo de identitário que faz parte da memoria coletiva dos estremocenses e que num contexto de globalização distingue Estremoz e o Alentejo no panorama mundial. Daqui a 30 anos, isto vai ser devidamente valorizado.

Quais foram os principais argumentos apresentados na candidatura?

A nossa argumentação foi com base na técnica e estética, que são únicas, e num trabalho histórico mantido pelas mãos da comunidade que assegura a renovação dos artesãos. Não há escolarização nenhuma, ainda é feito dentro destes parâmetros. Não havia nenhum figurado do mundo classificado, o que dava força à nossa candidatura, e era algo de identitário em termos locais, só produzido em Estremoz, sem paralelo no mundo. Em virtude de tudo isto, tivemos a pretensão de ver reconhecido o interesse patrimonial e de levar o figurado para o próximo nível através de um Plano de Salvaguarda e Valorização, que apesar de simples é ambicioso e completamente exequível. Nesse plano, está ainda incluída a publicação de um livro, disponível a partir de 1 de setembro numa edição de mil exemplares.

Em que se traduz a aprovação da candidatura?

A marca UNESCO é muito forte e atraente em termos de investimento. Havendo algo de identitário e diferente, que não seja apenas paredes e pedras, as pessoas param aqui e de facto isso nota-se.

E agora, além do público estrangeiro, parece que o mercado interno está atento ao figurado.

O país vibrou imenso. Os portugueses gostam de tudo o que é identidade e diferenciador e nós temos isso tudo. Além do património monumental, temos este valor patrimonial a que a chancela UNESCO dá outro brilho. Estou muito confiante quanto ao futuro.

Considera que esta classificação pode motivar os jovens a aprender esta arte popular?

Em termos sociais, Portugal está a percorrer um caminho que já foi trilhado noutros países, que é ver no artesanato, não a profissão dos pobres e uma arte menor, mas sim uma arte que socialmente releva a pessoa que a faz. É um desafio constante porque além de trabalhar a tradição tem a inovação associada. Tenho a certeza que os jovens vão começar a olhar para o boneco de Estremoz não como a arte da memória dos avós, mas como uma forma de reconhecimento social e garantia de futuro e sustentabilidade da zona.

Relativamente à coleção do padre Mário Aparício Pereira, doada à Misericórdia, o que a torna tão interessante e valiosa?

É uma coleção fabulosa. A maior parte do figurado musealizado é o antigo ou do início da Escola de Artes e Ofícios e este figurado vem colmatar lacuna entre os anos 1970 e início dos anos 2000. É um período cronológico que faz falta à cidade e que é tremendamente importante. Deste período, é certamente a maior coleção do país. O padre Mário Aparício Pereira já tinha consciência do núcleo base do figurado de Estremoz e queria ter um de cada artesão, quase conseguiu. Só das Irmãs Flores tem 310 peças, do José Moreira 226, tem quatro procissões, uma das quais com 117 figuras, o que é algo fantástico e terá lugar central num museu. É uma coleção com enorme qualidade, que tem alguns problemas de conservação porque a casa era muito pequena e havia bonecos ainda embalados, mas não é problema nenhum. A maior parte das peças está em excelente estado e faço votos para que a Misericórdia consiga devolver a exposição à cidade. O município está disponível para colaborar na musealização e restauro de algumas peças.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas