Navegar no arquivo histórico da Santa Casa da Misericórdia de Faro é mergulhar em compromissos, registo de irmãos, atestados de pobreza, legados e doações, registo de recolhidos no albergue, projetos de edificações, relação de pobres, órfãos e viúvas, distribuição de missas e ofícios, registo de entradas e saídas de doentes, entre muitos outros temas.

São quatro fundos documentais que compõem este arquivo cujo inventário foi apresentado ao público em maio do ano passado, resultado de um longo trabalho feito pelo arquivista municipal Tiago Barão, em colaboração com a diretora do arquivo distrital de Faro, Maria Luísa Pereira. 

O arquivo poderia ser mais vasto não fosse o incêndio de 1596, aquando da entrada dos ingleses comandados pelo conde de Essex, que consumiu grande parte do arquivo da Santa Casa, e o terramoto de 1755 que também fez estragos na instituição. Ainda assim estão ali reunidos documentos que vão desde 1512 até 1990, alguns de grande relevância histórica, outros suscitando muita curiosidade até aos mais leigos na matéria. 

No rol de documentos antigos encontramos documentos com valor histórico que vão além da Misericórdia. É o caso de documentos médicos comprovando a entrada no hospital de seis sobreviventes de um bombardeiro da marinha dos EUA que caiu em frente à praia de Faro em 1943, durante a II Guerra Mundial. “Eu descobri no banco de emergência a entrada dos seis sobreviventes, os nomes completos, as idades, o diagnóstico, o dia da alta. São coisas engraçadas”, conta-nos Paulo Brazão, técnico do arquivo, entusiasmado com a descoberta. 
Com um brilhozinho nos olhos diz-nos que não tem muito tempo para ler, mas às vezes “algumas coisas suscitam curiosidade, como foi o caso de um documento falando da Festa da Visitação, que por volta de 1800 custou 15 escudos e quatro centavos”. E em tom de brincadeira acrescenta: “Eu pensei logo: a deste ano deve ter custado mais”.
Encontrar alguém que se interesse por escrever um livro sobre a Misericórdia de Faro é agora um dos grandes desafios da instituição. “O nosso arquivo é relativamente pequeno, mas ali encontram-se documentos importantes da organização da Santa Casa”, refere o vice-provedor, Francisco Lúcio de Sousa, reconhecendo que “não é uma tarefa fácil, pois está reunida muita documentação que necessita ser complementada em articulação com outros arquivos, o que vai permitir ter um conhecimento da vida da Misericórdia ao longo da história”. 

Uma história que se ‘folheia’ com todo o cuidado, minuciosamente, para que nada se apague com o passar do tempo. Paulo Brazão tem vindo nos últimos tempos a dedicar-se à conservação preventiva, quer na higienização das unidades de instalação, quer no campo da luminosidade e da humidade. “Também estamos a trabalhar nisso para ter tudo preparado antes do Inverno. É um trabalho moroso e de paciência, quase diria, de monge copista. Temos de isolar o arquivo, quer da luz, quer da humidade quando não está a ser usado”. 

Vale-lhe o carinho que sente pelos livros. “O primeiro que fiz demorei de 7 de março a 3 de abril, três tardes por semana, mais de 400 páginas. “Era também o que estava mais deteriorado”, explica. Por entre tantas folhas de papel, cuja tinta resistiu ao passar do tempo, existe uma que o vice-provedor jamais esquecerá. Aquela na qual consta o nome de sua mãe. Pois também ela foi uma ‘filha’ da Misericórdia de Faro. “A minha mãe também foi posta aqui. O documento, que se encontra no arquivo, refere que foi encontrada em 1908 no hospício. Não chegou a ir à roda dos expostos”, refere. São muitas as histórias que se encontram agora à mercê dos mais curiosos.?

Voz das Misericórdias, Nélia Sousa