A recuperação do retábulo da extinta Misericórdia de Tancos foi um dos temas do Simpósio de História da Arte realizado em Óbidos.

Sobreviveu a cheias, ao abandono, à degradação e até a polimentos com banha de porco. Chegou mesmo a ser dado como desaparecido. Hoje é uma das peças que enriquece o Museu Diocesano de Santarém. Falamos do retábulo maneirista da igreja da extinta Misericórdia de Tancos, um trabalho do pintor Simão Rodrigues restaurado no âmbito do projeto Rota das Catedrais, cuja história foi recordada durante o 2.º Simpósio de História e Arte na Misericórdia, realizado nos dias 5 e 6 de julho, pela Misericórdia de Óbidos.

A história do retábulo de Tancos remonta a 1590, tendo sido executado cinco anos após a conclusão do templo, construído nas margens do Tejo. Esta proximidade ao rio ditou a progressiva degradação quer da igreja quer do retábulo. 

O edifício “ficava numa zona de cheias e todos os anos inundava”, referiu Eva Neves, técnica do Museu Diocesano de Santarém, contando que, após a extinção da irmandade, em 1875, o templo chegou a ser ocupado por um batalhão do exercício e foi profanado e roubado. Mas, tanto os azulejos como o retábulo acabariam por sobreviver e, no final da primeira metade do século XX, seriam resgatados. O painel azulejar foi, por decisão da Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, removido e reaproveitado noutros templos que estavam então a ser restaurados. O retábulo seguiu para a Igreja Matriz de Tancos, “mas nunca foi montado”.

Quando em 2009, no âmbito da elaboração da carta de risco do património artístico da Diocese de Santarém, a equipa do museu visitou o local, encontrou o retábulo em “mau estado”. Segundo Eva Neves, as peças “estavam no chão, havia tábuas soltas, elementos partidos e a superfície pictórica encontrava-se muito escurecida”. Iniciou-se, então, o processo que levaria ao seu restauro e conservação, executado por uma equipa da Escola das Artes da Universidade Católica do Porto.

“Foi um trabalho monstruoso”, reconhece Eva Neves que, durante o simpósio promovido pela Misericórdia de Óbidos, expôs a intervenção feita, painel a painel, no retábulo. O da Última Ceia, por exemplo, tinha superfície “muito escurecida” e apresentava um acabamento que “ninguém sabia muito bem o que era”. Soube-se depois que, quando esteve na Igreja Matriz, havia “uma senhora zeloza que, de tempos a tempos, passava banha de porco nas pinturas, porque alguém lhe disse que assim ficavam mais visíveis”. “Quando viu o retábulo restaurado até chorou”, contou Eva Neves, admitindo que “dificilmente” haverá condições para o painel voltar à igreja de Tancos, “também ela a necessitar de intervenção”.

A atribulada história do retábulo de Tancos foi um dos exemplos de restauro de pinturas e icnografias das Misericórdias, apresentados neste simpósio de história e arte, onde se falou também da intervenção nos painéis de São Vicente, propriedade da irmandade de Óbidos, da recuperação da Igreja da Misericórdia de Leiria – hoje transformada em Centro de Diálogo Intercultural -, e do restauro da pintura mural da Igreja da Misericórdia de Alvalade do Sado.

“O trabalho de conservação e de restauro é um trabalho de ciência e de paciência”, defendeu Carla Rego, técnica do Instituto Politécnico de Tomar, que participou na recuperação dos painéis de São Vicente. A investigadora reconheceu que, apesar de alguns erros que ainda vão ocorrendo, “sobretudo por desconhecimento”, há hoje “maior sensibilidade” para esta área, nomeadamente, por parte das instituições proprietárias deste tipo de património.

Carlos Orlando, provedor da Misericórdia de Óbidos, entidade organizadora do simpósio, em parceria com a Câmara local e a União das Misericórdias Portuguesas (UMP), frisou, por isso, a importância deste tipo de iniciativas, pela “troca de experiências e partilha de saberes” que proporcionam. Além disso, é também a oportunidade de “valorizar e divulgar” o património cultural das Misericórdias de “indiscutível valor” e que dá um “importante contributo” ao sector do turismo, realçou, por seu lado, Bernardo Reis, vogal do Secretariado Nacional da UMP e provedor da Misericórdia de Braga, que considerou “essencial conhecer, preservar e estudar” esse património.  

Entre os oradores desse simpósio estiveram Pedro Raimundo e Clotilde Pratas, do Gabinete do Património Cultural da UMP. Os técnicos fizeram apresentações sobre “Pintura nas Misericórdias e das Misericórdias” e “Bandeira da Misericórdia: pintura e iconografia”, respetivamente.

Voz das Misericórdias, Maria Anabela Silva