Ao entrar na Igreja da Misericórdia de Peniche, um templo do século XVII, os olhos prendem-se no teto, preenchido na íntegra por pinturas que representam os Passos da Paixão de Cristo. São 55 telas que hoje se apresentam quase em todo o seu esplendor depois dos trabalhos de conservação e de restauro de que foram alvo na segunda metade do século XX, aquando das obras de reabilitação do edifício.

Entre autores representados no teto está Baltazar Gomes Figueira, pintor que se destacou no século XVII e que iniciou a escola que seria continuada pela sua filha Josefa de Óbidos, cujo trabalho e talento também pode ser apreciado nesta igreja, onde existem seis telas da sua autoria. 

Mas nem só de pintura se faz a beleza deste templo. Nas paredes sobressaem azulejos dos séculos XVII e XVIII. Há ainda a tribuna destinada aos mesários, encimada pelo escudo nacional, da época de D. João V, e o túmulo de D. Luís Ataíde, terceiro conde de Atouguia e, por duas vezes, vice-rei da Índia.

Deixamos a nave principal da igreja. A visita leva-nos agora até à sacristia. É aí que encontramos um arcaz com pinturas que representam as obras de misericórdia. Ao lado, sobressai também a bandeira “representando a Senhora da Misericórdia com o seu manto protetor, protegendo todos, dos mais afortunados aos mais pobres”, explica o provedor Emídio Barradas, que, acompanhado do seu vice-provedor, serve de cicerone.

É, contudo, na sala contígua à sacristia que encontramos uma das peças mais surpreendentes. Referimo-nos a parte de um retábulo flamengo, identificado como pertencendo à designada Escola de Bruxelas e datado do século XV, que apareceu na costa de Peniche na sequência de um naufrágio, ocorrido no final do século XVI.

O episódio é relatado na obra “Le livre des Peintres”, de Carel van Mander, no capítulo dedicado ao pintor holandês Henri Vroom, que seguia no barco naufragado. “Foi preciso que abandonassem o navio durante a noite para se dirigirem num barco a uma ilhota rochosa; Los Barlingos (Berlengas). A corrente levou a carga para um local da costa portuguesa onde se encontrava um convento de frades”, pode ler-se nessa obra citada no documento informativo distribuído aos visitantes da igreja da Misericórdia. 

O retábulo ficaria depois à guarda dos religiosos do Convento do Bom Jesus do Abalo, até à extinção das ordens religiosas, sendo então entregue à Misericórdia. “Foi colocado na Capela do Calvário, mas durante muitos anos não se lhe deu o valor. Mais tarde, um mesário alertou para a eventualidade de se tratar de uma peça importante. A investigação viria a confirmá-lo”, conta Emídio Barradas, adiantando que posteriormente o retábulo foi objeto de tratamento e restauro. Um trabalho que não está ainda concluído, pelo que em exposição está apenas uma parte da peça, que já integrou diversas mostras de arte. 

“Temos recebido investigadores que veem aqui à procura do retábulo, considerado até à data como o único exemplar da Escola de Bruxelas existente em Portugal”, revela o provedor que chama também a atenção para outra peça emblemática do acervo da instituição: a imagem original de Nossa Senhora da Boa Viagem, padroeira dos pescadores de Peniche.

Emídio Barradas não esconde o orgulho pelo património artístico da irmandade, mas frisa que o mesmo tem subjacente “uma enorme responsabilidade”, que passa pela sua preservação. “Tem havido, ao longo das sucessivas gerações, um grande esforço nesse sentido, que temos a obrigação de continuar. Mas não é fácil”, admite o provedor, revelando que a instituição gostaria de criar um núcleo museológico.

Voz das Misericórdias, Maria Anabela Silva