O VM esteve no ateliê de conservação e restauro da Misericórdia do Porto e conheceu algumas técnicas de salvaguarda do património

No final da Rua das Flores, uma das mais emblemáticas da cidade do Porto, funciona um centro de conservação e restauro, especializado em pintura e escultura, que presta apoio ao Museu e Igreja da Misericórdia do Porto (MMIPO) e está, desde 2019, disponível para prestar serviços à comunidade. O VM acompanhou um dia de trabalho do Misarte – serviço de conservação e restauro da Misericórdia do Porto no laboratório, estreado em março de 2019, e conheceu algumas técnicas de salvaguarda do património utilizadas pela equipa com mais de 15 anos de experiência.

Mesmo num dia de inverno, em pleno mês de janeiro, a luz invade as duas salas através de janelões distribuídos em duas frentes. “Nunca estivemos tão bem. Temos luz, tetos altos, exaustão, mesas boas. Muitos colegas de profissão invejariam estas condições”, admite Sandra Pascoal, técnica de conservação e restauro da Santa Casa desde 2003.

Até chegar à Rua das Flores, Sandra e a colega que a acompanha desde os tempos de formação, Silvina Barbosa, mudaram várias vezes de instalações, passando pela rua das Galerias de Paris, Colégio Barão de Nova Sintra e edifício do MMIPO. “Adaptar um espaço para a criação de um ateliê de restauro representa um investimento considerável”, justifica a coordenadora do Misarte e responsável pela gestão de coleções do museu, Armanda Canhota, que está empenhada na divulgação do projeto à comunidade e instituições congéneres.

“Temos dado resposta às nossas necessidades, sobretudo ao nível da pintura e escultura, mas estamos disponíveis para prestar serviços a particulares e outras instituições. As Misericórdias têm um património semelhante, desde os retratos de benfeitores e bandeiras processionais a esculturas religiosas, e a maior parte do espólio poderá estar em mau estado porque o restauro é caro”, refere enquanto nos guia pelo edifício destinado aos serviços administrativos do museu.

No dia da nossa visita, a equipa do Misarte tem oito peças no ateliê, em diferentes fases de restauro. Quatro telas (três retratos de beneméritos e uma Pietá), três esculturas de grandes dimensões (São Cosme, São Damião e Nossa Senhora com o Menino, presumivelmente do século XVII) e uma pequena do século XVIII, de “Santo António com Saco de Pão”.

Numa pausa entre pinceladas, Silvina Barbosa explica que costuma “ter duas ou três peças em simultâneo porque há tempos de espera e não consegue estar concentrada tanto tempo na mesma tarefa”. Hoje vemo-la debruçada sobre o retrato de “António Ferreira Silva de Brito, Barão da Ermida” (século XIX) a preencher lacunas quase impercetíveis ao olho humano. “A reintegração cromática [preenchimento de lacunas na camada pictórica com recurso a massas e, se necessário, retoques de cor] é um processo doloroso, mas já estou a terminar”, confessa.

“Intervenção mínima” é o lema da equipa de conservação e restauro da Misericórdia do Porto, de modo a distinguir o traço do autor da intervenção do conservador-restaurador, sem comprometer a coerência e leitura da obra.  “Antigamente, não se restaurava tanto, quase se refazia, o que dificulta muito o nosso trabalho. Para nós, é mais fácil restaurar uma tela envelhecida pelo tempo do que uma tela repintada que foi alvo de sucessivas intervenções”, explica Sandra Pascoal. Nesse caso, removem com precisão de cirurgião as camadas que não respeitam a intenção do autor para garantir a preservação das características originais.

Quando as obras entram no ateliê o primeiro passo é avaliar o estado de conservação, fotografar e definir um plano de intervenção por etapas (“reentelagem com novo tecido, para reforço do suporte original da tela, preenchimento de lacunas com massa, no caso de rasgões, “reintegração cromática” e aplicação de verniz). No decorrer do processo, surgem “quase sempre surpresas”, como nos confidenciam, que obrigam a alterar o “tratamento”.

Concluído o processo, as peças saem do ateliê do Misarte com um relatório da intervenção efetuada e o plano de conservação preventiva (iluminação, temperatura e humidade relativa), a cumprir pela entidade que gere o espólio. “No caso de particulares, é difícil reunir as condições ideais para expor uma obra de arte. Há pessoas que restauram um quadro e o colocam por cima de uma lareira ou ao lado de uma vela”, alerta Sandra Pascoal.

O espaço branco imaculado, que funciona como ateliê, laboratório e oficina de carpintaria, em áreas compartimentadas, permite que todos se concentrem nas suas tarefas: Sandra e Silvina, que se conhecem há mais de 20 anos, e o jovem carpinteiro Luís Monteiro, que se juntou em 2015 à equipa para se dedicar ao restauro de molduras e apoiar a montagem de exposições.

“Isto já é quase um casamento”, brincam as duas colegas, que iniciaram na Misericórdia do Porto a carreira de restauradoras. Conheceram-se em 1999, durante o curso profissional, promovido pela Santa Casa e IEFP, e tiveram oportunidade de estudar em Florença, durante seis meses, ao abrigo do programa de mobilidade europeia Leonardo da Vinci. “Foi uma experiência maravilhosa”, recorda Silvina Barbosa.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas