No Fundão, a recriação dos quadros vivos da Paixão nas sete capelas da cidade confere à procissão de quinta-feira Santa um carácter único.

É quinta-feira à noite. À luz dos archotes junta-se a luz da lua cheia que este ano chegou em vésperas da Páscoa para iluminar as celebrações da Semana Santa, como a procissão do Senhor da Cana Verde, assim designada numa alusão ao cetro que os soldados romanos entregaram a Jesus, juntamente com a coroa de espinhos e o manto escarlate, troçando do título de rei dos judeus. 

A procissão, que sai à rua na Quinta-feira Santa, também se designa de procissão do Ecce Homo e no Fundão tem ainda a designação de Ermidas porque à procissão se juntam os quadros vivos da Paixão, preparados e encenados pela comunidade nas sete capelas da cidade.

Esta manifestação, organizada pela Santa Casa da Misericórdia do Fundão, está documentada pelo menos desde 1697 e tem a particularidade de mobilizar a Irmandade e também a comunidade. “São precisos pelo menos 80 irmãos”, refere o responsável pelo culto na Misericórdia, Carlos Homem.

“A escolha dos quadros é todos os anos diferente, claro que passados muitos anos acabamos por repetir um ou outro, reunimos, escolhemos os quadros em função do lugar e de quem vai organizar a Ermida, obedecendo a alguma cronologia, e entregamos às entidades que os adaptam às possibilidades que têm.”

O rigor nos trajes, na maquilhagem e na representação transforma os quadros num verdadeiro espetáculo, como refere Amália Borges, que viu este ano pela primeira vez a procissão: “eu ouvia falar das Ermidas, mas não fazia ideia que era tão bonito.”   

Uma ideia partilhada pelo capelão da Misericórdia, padre António Gama, que tem presidido à procissão nos últimos anos. “É um espetáculo bonito e as pessoas são extremamente cuidadosas, é quase o milagre da representação da maneira que o faz com as dificuldades que têm.”

A procissão começa sempre na capela da Misericórdia que este ano teve a cargo o quadro “O Beijo de Judas”. A cena recua à noite antes do julgamento de Jesus, quando este se encontrava em oração com os discípulos no horto das oliveiras e Judas se aproxima dele para lhe dar um beijo. O beijo da traição que o identificou junto dos soldados.

A procissão segue depois, com uma única imagem, a do Senhor da Cana Verde, para a capela de Santo António, num dos extremos da cidade. É lá que os bombeiros representaram, este ano, o quadro da coroação de espinhos. Os quadros só são revelados à chegada da procissão e desfeitos depois de ter passado o último fiel ou visitante. 

À chegada ao cimo da principal avenida, no local onde antigamente se localizava, mais à esquerda ou mais à direita, a capela de Nossa Senhora da Piedade e da qual hoje já não restam vestígios, está o quadro vivo da responsabilidade da junta de freguesia do Fundão sobre o momento em que, no percurso para o calvário, Jesus encontra a sua mãe. Os figurantes, funcionários, familiares, amigos e alguns até elementos de grupos de teatro, fazem o seu papel na perfeição, vestindo a personagem, normalmente descalços, com vestes leves, apesar do frio da noite. 

A segunda, das três quedas que, segundo reza o Evangelho, Jesus sofreu a caminho do calvário, é o quadro que este ano a Associação Comercial e Industrial do Concelho do Fundão representou no alpendre da capela Nossa Senhora da Conceição, datada do século XVI. 

Centenas de pessoas participam na procissão, que atrai muita gente ao Fundão, “umas numa perspetiva religiosa, outras numa perspetiva mais de turismo religioso”, refere o provedor, Jorge Gaspar, acrescentando: “Procuramos envolver toda a comunidade e instituições da cidade e são estes quadros que a distinguem de outras procissões que se realizam na quinta-feira que antecede o domingo de Páscoa. Não sei se no país existe mais algum lugar onde isto se faz, mas creio que não.”

O provedor e a Irmandade integram também a procissão que segue para a capela de São Francisco que este ano acolheu o quadro com o maior número de figurantes. Eram 23 e representaram o quadro da Paixão em que Jesus fala às mulheres de Jerusalém. “É aquele momento em que um grupo de mulheres, mais corajosas que os homens que fugiram todos, mesmo os discípulos, demonstram o quanto sofriam com o sofrimento daquele homem”, explica o padre António Gama. 
Carina Ramos era uma dessas mulheres e não foi a primeira vez que participou nas Ermidas. “Gosto muito deste tipo de atividades, gosto muito do espírito”. Um espírito que também requer algum sacrifício já que obriga os figurantes a estarem pelo menos duas horas, o tempo que dura a procissão, parados no mesmo local e posição. “É difícil, andei dois dias com dores nos pés.” 

Ao quadro da responsabilidade da câmara do Fundão juntou-se, no coreto do templo, o coro comunitário Ensemble Renovatio, com os cânticos sentidos, tristes e dolorosos da época que a imagem da Verónica tão bem representa quando diz, ou canta: “A vós todos que passais parai e vede, se há dor igual à minha dor.”
Já na capela do Espírito Santo, no outro extremo da cidade, os Escuteiros do Fundão representaram o quadro em que os soldados tiram as vestes a Jesus, que sortearam entre si. 

Ao lado, está a capela do Calvário que recebeu o momento em que Jesus é pregado na cruz. O quadro, da responsabilidade do Abrigo de S. José, encerra a procissão que este ano contou com mais de uma centena de figurantes que com grande realismo encarnam as personagens contando a história que se fundamenta no texto do Evangelho que vai do julgamento de Jesus à sua crucificação, no calvário.

É da capela do calvário que, no dia seguinte, parte a procissão do Enterro do Senhor, agora já deitado no esquife, e que constitui outra manifestação religiosa que há séculos que sai à rua na Sexta-feira Santa, pelas mãos da Misericórdia do Fundão.  

Voz das Misericórdias, Paula Brito