Na década de 1920, as Misericórdias emitiram papel-moeda nas terras onde escasseou o metal em circulação. Pelo menos 29, no norte, centro e sul do país.

As moedas locais, destinadas à dinamização da economia local e pequenas trocas comerciais, não são uma novidade em Portugal.  Na década de 1920, a moeda desvaloriza de tal maneira que o metal se torna mais valioso que o seu valor de rosto. Surge então uma moeda de recurso impressa em papel, também designada de dinheiro de emergência ou cédula fiduciária, que é colocada em circulação tanto pelo Estado e entidades oficiais designadas para o efeito, como por entidades públicas e privadas. O que muitos não sabem é que também as Misericórdias emitiram papel-moeda nas terras onde escasseou o metal em circulação. Pelo menos 29, no norte, centro e sul do país, segundo dados apurados pelo VM.

A instabilidade governativa durante a Primeira República e, em particular, a eclosão da primeira Guerra Mundial (1914-18) vêm desequilibrar as contas públicas, dando origem ao aumento da dívida, inflação, escassez de bens e subida de preços. Os metais da moeda sobrevalorizam, tornando-se mais vantajoso derretê-los ou utilizá-los para fins industriais. A nível oficial, a solução passa pela emissão de moedas em ligas e metais pobres (bronze, cobre e até ferro), de notas do Banco de Portugal de valor reduzido e de cédulas pela Casa da Moeda. Em 1917, a Misericórdia de Lisboa é igualmente autorizada a emitir cédulas de 5 centavos. Mas isso não se revela suficiente para suprir a escassez generalizada de moeda.

Dentro das localidades, as câmaras municipais, juntas de freguesia, estabelecimentos comerciais (lojas, mercearias, etc), fábricas, associações, hospitais e Misericórdias decidem então emitir cédulas fiduciárias de valores entre 1 e 5 centavos, na sua maioria, mas também de 10, 20 e valores superiores (50 centavos e 1 escudo), em casos excecionais.

Todas estas emissões, incluindo as das autarquias, foram feitas ilegalmente, mas toleradas pela sua utilidade pública e circulação restrita. “Tirando as emissões da Casa da Moeda e Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que tinham circulação nacional, as restantes destinavam-se a suprir a necessidade de moeda a nível local”, explicou o numismata do Museu do Dinheiro, João Pedro Vieira, em entrevista ao VM (ver caixa). Documentos oficiais revelam isso mesmo. 

Vivem-se tempos difíceis em vários pontos do país, sobretudo a partir de 1916, devido aos efeitos nefastos da primeira Guerra Mundial, gripe pneumónica (1918-19), elevada inflação e desvalorização da moeda. O aumento do preço dos géneros alimentícios e medicamentos torna especialmente difícil a gestão dos hospitais das Misericórdias, num período em que a maioria dos internados é pobre e a procura de doentes epidémicos aumenta.

Num ofício enviado ao ministro do Interior, em dezembro de 1917, o provedor da Misericórdia de Chaves, José Correia dos Santos Júnior, refere graves dificuldades financeiras, decorrentes do elevado custo dos medicamentos e alimentos e aumento da procura de doentes de concelhos vizinhos (Boticas, Montalegre, Vila Pouca de Aguiar e Valpaços). Em julho de 1918, a escassez é tal que o sucessor, Francisco Marcelino de Fontoura, pede à Assistência Pública de Lisboa e ao celeiro municipal o envio de arroz, açúcar e sabão para os doentes do hospital e jovens do asilo. 

Face ao aumento da despesa com a atividade hospitalar e aumento generalizado de preços, o provedor propõe a emissão de 25 mil vales de 2, 5, 10 e 20 centavos, 40 mil vales de 50 centavos e 30 mil vales de 1 escudo. Numeradas, as cédulas apresentam uma ilustração do edifício constituído pela igreja e hospital, na frente, e de um grupo de três figuras (mãe e duas crianças) no verso. 

É comum as instituições incluírem representações de monumentos, espaços públicos ou paisagens típicas das localidades, existindo ainda casos em que se representam as obras de misericórdia (Vila Real, Évora), versos da epopeia “Os Lusíadas” (Ferreira do Alentejo) ou ilustrações estilo Arte Nova (Pombal). Noutros casos, são colocados em circulação simples papéis carimbados com o brasão da instituição. 

Em Tomar, a emissão de cédulas parece estar igualmente associada a dificuldades na gestão e manutenção do Hospital de Nossa Senhora da Graça, embora não se tenham identificado registos no arquivo (ver caixa). Sabe-se que, segundo dados apurados pelas historiadoras Graça Arrimar e Maria Teresa Desterro para o livro dedicado aos 500 anos, foram feitas intervenções nos edifícios da Misericórdia (igreja, hospital, sala do despacho e dependências), no final do século XIX, e que no início de XX a “situação não tinha melhorado substancialmente”. 

Nestes casos, a memória oral pode ser um precioso aliado, como nos comprova o testemunho do mesário António Santos Fonseca, num encontro inesperado na cidade. “O tesoureiro que assina as cédulas – José Gomes dos Santos, nome legível nos exemplares guardados no arquivo -  é meu bisavô. Daquilo que eu ouvia em casa, pela minha ‘Ti Carlota’, as cédulas da Misericórdia foram feitas para custear as ajudas sociais”, conta ao VM. 

Na imprensa da época, é frequente encontrar referências à “falta de fundos dos hospitais [das Misericórdias] para acudir ao tratamento e alimentação dos doentes”, segundo nos relata o especialista do Museu do Dinheiro. Nas suas incursões pela Hemeroteca de Lisboa, repositório de imprensa nacional, João Pedro Vieira lê que os “hospitais estavam abandonados pelo Estado” e que as "cédulas eram uma forma de conseguir algum financiamento”.

Pelos mesmos motivos, a mesa administrativa de Arcos de Valdevez decide emitir cédulas em nome do Hospital de São José: facilitar os trocos na vila e equilibrar as contas da instituição. Na ata de 9 de fevereiro de 1922, a mesa administrativa refere que “esta caza de caridade vive quasi na penúria por falta de meios pecuniários e por tal motivo era seu parecer que fizesse uma larga imissão de cédulas para serem vendidas ao publico que os procure, pois os lucros seriam certos e beneficiariam consideravelmente esta Mizericordia”. O provedor Germano Amorim desloca-se então a Lisboa para imprimir cédulas que reverterão a favor da Santa Casa. Segundo a mesária responsável pela área do património, Maria Lúcia Afonso, “devem ter sido emitidas em grande quantidade pois ainda hoje aparecem frequentemente em leilões”. 

Infelizmente, na maior parte dos casos, os exemplares não chegam intactos aos nossos dias, devido à fraca qualidade do papel e intensa circulação neste período de escassez monetária.  Por essa e outras razões, este é um fenómeno pouco estudado e ainda pouco conhecido no universo das Misericórdias. A bibliografia é escassa e não há registo da emissão de cédulas na maior parte dos arquivos.

Em 2014, contudo, este fenómeno sofre uma reviravolta, com a organização de um grande leilão de cédulas (ver caixa), pela Numismática Leilões. Surgem cédulas inéditas no mercado, muito disputadas pelos colecionadores, e dispara a procura e publicação de obras sobre o tema. Motivado por este novo impulso e dinamismo, o numismata que colaborou com o VM na preparação deste trabalho, desafia as instituições a abordar este “tema com vastíssima matéria por desbravar” e que merece uma “investigação aprofundada”. 

Leia a reportagem na íntegra no Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas

Imagem composta por cédulas que pertecem à Coleção do Banco de Portugal.