Até 2020, a Misericórdia de Torres Vedras pretende concluir a conservação, restauro e digitalização de 50 obras do acervo documental

Até abril de 2020, ano em que comemora o 500º aniversário, a Misericórdia de Torres Vedras pretende concluir a conservação, restauro e digitalização de 50 obras do acervo documental, no âmbito de uma parceria com o Instituto Politécnico de Tomar (IPT). O projeto em curso desde 2018 é da responsabilidade de Sofia Vargas Costa, conservadora-restauradora, e Leonor Loureiro, do Laboratório de Conservação e Restauro de Documentos Gráficos do IPT. 

Preservar um espólio único, constituído por 630 manuscritos e livros datados de 1571 a 1973, é o objetivo da mesa administrativa, que “sonha” com este projeto desde 2017. Segundo o provedor Vasco Fernandes, “esta é a segunda intervenção no arquivo” desde que assumiu funções. A primeira foi em 2002, com a coordenação de Pedro Penteado atual diretor da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), e consistiu na inventariação, limpeza e acondicionamento do património documental. 

Passados mais de 15 anos, a intervenção foi retomada, de forma mais aprofundada, com uma especialista dedicada a tempo inteiro ao espólio. Sofia Vargas Costa assumiu a tarefa em abril de 2018 e sabe que tem pela frente uma “corrida contra o tempo”, dada a urgência de restauro de algumas peças (desgaste natural, oxidação da tinta e presença de fungos) e a duração do projeto (dois anos). Depois de concluído o levantamento do estado de conservação das peças, iniciou o processo de desmontagem (no caso dos livros), limpeza (via seca e, quando necessário, via aquosa), registo fotográfico, digitalização e costura dos cadernos do miolo do livro, de forma fiel à encadernação original. 

Para já, está previsto o tratamento de 50 exemplares, de entre um total de 630. “É uma gota no oceano porque o acervo é fantástico e único, mas o trabalho tem de ser feito com alguns cuidados. Dentro das nossas funções, temos a obrigação de manter todo o original possível e substituir com material compatível e semelhante ao original”, explica Leonor Loureiro, docente e responsável pelo Laboratório de Conservação e Restauro de Documentos Gráficos do IPT. 

A conservação e restauro de um espólio com esta dimensão e diversidade é um processo rigoroso que requer conhecimentos específicos, persistência e meios técnicos dispendiosos, nem sempre ao dispor das instituições. “Tanto podemos ter um livro que demora um mês a ser intervencionado como outro que leva três. Além disso, os materiais utilizados neste género de livros não só são caros como faltam fornecedores, mesmo a nível internacional”, acrescenta.

A título de exemplo, conta que uma folha de pergaminho, produzida artesanalmente a partir de pele de cabra ou ovelha, tem de ser encomendada a um fornecedor de Israel e custa 120 euros. Já o couro para encadernar, embora feito em Portugal (Alcanena), tem de ser produzida à “maneira antiga”, com taninos vegetais, e demora por isso 4 a 6 meses a ficar pronto. 

Reconhece, por isso, que este tipo de trabalho tem de ser assumido por pessoas com “grande capacidade de organização e de previsão de situações para rentabilizar o tempo”. Empenhadas no projeto, as duas técnicas assumem com responsabilidade a tarefa que lhes foi confiada de fazer uma “passagem de testemunho correta e preservar o espólio para as gerações futuras”. 

Embora invisível para a maior parte das pessoas, este património documental reflete a orgânica da instituição, gestão de recursos financeiros, patrimoniais e humanos e assistência prestada ao longo dos séculos, incluindo desde os compromissos e estatutos, alvarás e cartas régias, atas da assembleia geral e mesa, registo de eleições e admissão de irmãos, tombos de propriedades, registo de funerais, esmolas, movimento de doentes, receituário, entre outros.

Além das palavras escritas a tinta ferrogálica e outros compostos, o papel pode ainda revelar informações como o seu local de produção (marca de água), utilização (caso dos missais com manchas de cera e fumo decorrentes da exposição nas igrejas) e importância artística, associada à presença de gravuras executadas por mestres nacionais e internacionais. 

A acompanhar a visita ao arquivo da Misericórdia de Torres Vedras esteve também o responsável pelo Gabinete de Património Cultural da União das Misericórdias Portuguesas, Mariano Cabaço, que valorizou o esforço e rigor científico do projeto de intervenção em curso. “Não seremos desculpados se perante os recursos e conhecimentos que temos ao nosso dispor nada fizermos para deixar este património às gerações futuras. Temos pela primeira vez condições excelentes, de técnicas, materiais e profissionais disponíveis, para o fazer”, alertou.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas