Vinte anos depois da publicação do primeiro volume da coleção ‘Portugaliae Monumenta Misericordiarium’, o VM foi conversar com os principais impulsionadores do projeto editorial que visou a compilação de documentos relevantes para a construção da história das Santas Casas e recolheu os testemunhos de investigadores e técnicos que asseguram a manutenção dos arquivos e memórias das instituições. Para assinalar o 20º aniversário sobre a edição do primeiro volume, a União das Misericórdias Portuguesas (UMP) vai oferecer a coletânea a bibliotecas mundiais de relevo.

Para o presidente da UMP, a entrega formal da coleção às “mais importantes e prestigiadas bibliotecas mundiais” é a melhor forma de assinalar a efeméride por colocar este repositório de dados “disponível a todos os que o queiram utilizar a bem do conhecimento e da cultura”. Considerando que a obra, no seu conjunto, representa “a mais importante coletânea de textos referentes ao movimento das Misericórdias portuguesas”, Manuel de Lemos referiu ainda que este gesto simbólico representa “um enorme tributo a todos os que fundaram e deram corpo a esta instituição ao longo dos séculos”. Os dez volumes vão passar a integrar os arquivos da Biblioteca Apostólica Vaticana, bibliotecas do Conselho da União Europeia, da Organização das Nações Unidas, da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, Biblioteca Nacional da Índia, Brasil, entre outras.

Mais de 20 anos após o protocolo firmado pelo Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR) da Universidade Católica Portuguesa e a UMP, que deu origem à coletânea, os investigadores envolvidos confirmam a mais-valia do projeto em termos de registo, compilação e preservação de documentação valiosa para o estudo das Misericórdias, acompanhado do aumento do interesse pela história da assistência em Portugal. 

José Pedro Paiva, investigador e coordenador científico do projeto, constata o impacto muito positivo ao nível da investigação e ensino em Portugal, comprovado pelo “elevado número de dissertações de mestrado e de teses de doutoramento que têm continuado a ser apresentadas em diversas universidades portuguesas, ao que também não é estranho o facto de boa parte das historiadoras que integraram o projeto serem hoje docentes de grande prestígio nas Universidades de Évora, Lisboa, Coimbra e Minho”. Por outro lado, verifica que nas universidades há, cada vez, mais “planos curriculares, sobretudo de 2º e 3º ciclos, que dão atenção privilegiada ao estudo das Misericórdias e da sua ação assistencial”.

Uma das autoras, que se tem dedicado à historiografia das Misericórdias, corrobora o impulso dado à investigação nesta área, num capítulo do livro “A Misericórdia de Montemor-o-Novo – História e Património” (2008). Segundo Laurinda Abreu, “provavelmente poucos temas beneficiaram em Portugal de um investimento tão grande como o que foi feito nas Misericórdias ao longo das duas últimas décadas. Ainda que os estudos se tivessem iniciado antes do ciclo das comemorações do quinto centenário da sua fundação, foi este evento que criou, na maioria dos casos, as condições propícias para muitas das publicações que apareceram”.

As comemorações dos 500 anos das Misericórdias, através da constituição de uma comissão com financiamento associado, permitiram alavancar esta “iniciativa de grande alcance para a preservação da história e identidade das Misericórdias”, conforme recordou Vítor Melícias, um dos principais impulsionadores, que era então presidente da UMP. “Este conjunto de obras, além de inédito, é precioso e já era desejado há mais de um século, como se pode ler na obra de Vítor Ribeiro, sobre a Misericórdia de Lisboa (1898). Cem anos depois, foi possível levar por diante uma obra de tanto vulto, graças à intervenção do professor Pedro Paiva e equipa de investigadores, dispondo hoje de um bom instrumento de investigação e orientação para mais conhecimento da realidade das Misericórdias e defesa da sua identidade e atualidade”.

‘Portugaliae Monumenta Misericordiarum’ é hoje uma referência na historiografia das Misericórdias e um instrumento de trabalho para muitos investigadores e técnicos que asseguram o estudo, valorização e divulgação do património das Misericórdias, nos arquivos, espaços museológicos e centros interpretativos.

“É o mais importante conjunto de fontes e de artigos analíticos já publicados sobre as Misericórdias portuguesas, pelo que a sua consulta e leitura são imprescindíveis a qualquer investigador que se proponha trabalhar a história destas instituições e a da assistência no nosso país”, considera José Abílio Coelho, investigador da Universidade do Minho e coordenador do Arquivo Histórico da Misericórdia da Póvoa de Lanhoso.

Para Raul Mendes, diretor do museu da Misericórdia de Coimbra, a coleção é uma “bíblia de trabalho e obra de leitura obrigatória para compreender a história e intervenção das Misericórdias”, servindo de inspiração para muitas investigações e exposições que desenvolve. “Como temos uma coleção pequena, socorremo-nos do arquivo para fazer exposições e visitas guiadas. É inacreditável a quantidade de documentos que la estão transcritos”, partilhou.

O acesso às fontes primárias, que se encontram transcritas nos volumes, é destacado por investigadores e colegas de profissão como outra das mais-valias da obra, conforme adiantou ao VM a arquivista da Misericórdia de Viseu, Ana Pinto. “Sem as fontes primárias não conseguimos fazer a história e de outra forma os documentos acabariam por se perder”.  E isso só foi possível graças ao trabalho exaustivo em centenas de arquivos nacionais, que permitiu fazer, segundo José Pedro Paiva, uma “primeira aproximação da inventariação e identificação dos grandes núcleos que existem ainda em perto de 300 Misericórdias”.

A par do enorme incremento na investigação, Manuela Machado, responsável pelo Centro Interpretativo das Memórias da Misericórdia de Braga, destaca o contributo ao nível da sensibilização para a preservação do património. “As últimas duas décadas foram fundamentais para a historiografia das Misericórdias e deram origem a uma nova perspetiva de valorização do património, que é visível na dinâmica cultural e abertura de núcleos e centros interpretativos”.

Na perspetiva do responsável pelo Gabinete de Património Cultural da UMP, a coleção “potenciou a autoestima das Misericórdias, que reconheceram a importância da preservação dos arquivos. Hoje há muitas Misericórdias que, não tendo capacidade para constituir arquivos com equipa e instalações adequadas, têm feito, a conselho nosso, depósito dos seus documentos nos arquivos municipais e distritais”. Para Mariano Cabaço, é também notório “o cuidado no tratamento do património e maior consciência dos dirigentes para a preservação dos arquivos e património em geral”. Hoje são “poucas as surpresas desagradáveis que encontra” no terreno, quando faz visitas de reconhecimento e inventariação do património móvel.

Sendo por todos reconhecida como uma base fundamental de trabalho, investigadores e Misericórdias admitem, contudo, que ainda há muito a fazer em defesa da história e património, deixando o repto para novos projetos de investigação. “Ainda há muito a fazer para se conhecer plenamente a história destas notáveis instituições, também para dar a conhecer a existência de Misericórdias até ao presente ignoradas e que não foram registadas na coleção [exemplo de Solor, Indonésia, início século XVII]. O trabalho de pensar e repensar o passado destas instituições é, por natureza, sempre inacabado”, reflete José Pedro Paiva.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas.