Para Tiago Saraiva parece não haver impossíveis. Nasceu com paralisia cerebral e tem um grau de incapacidade de 95%, mas tal não lhe cerceou a sonho de fazer rádio, uma paixão que o acompanha "desde sempre".

A residir no Centro João Paulo II (CJPII), equipamento da UMP em Fátima, desde os três anos, fez da telefonia uma fiel companheira, que lhe foi alimentando o desejo de, um dia, também ele estar do outro lado, em frente ao microfone, a passar música, outra das suas paixões, e "a dar um pouco" de si aos outros. E esse dia chegou. Já lá vão quase quatro anos, com uma pandemia pelo meio, que obrigou a muita imaginação para dar continuidade ao projeto.

À quinta-feira de manhã, durante duas horas, Tiago sente-se como peixe na água. A acompanhá-lo está Lídia Saramago, técnica de educação especial e reabilitação da instituição, que, sem ter qualquer experiência radiofónica, embarcou nesta "aventura" e faz dupla com Tiago nas emissões que vão para o ar entre as dez e as 12 horas, e que são transmitidas através do Youtube, "de Fátima para o mundo".

O estúdio, montado com equipamento adquirido pela administração da instituição com apoio de mecenas, está instalado na sala de comunicação do CJPII. É também aí que funciona o jornal da casa, intitulado "As últimas de sempre" e que conta com participação de Tiago Saraiva. O espaço serve ainda para preparar as emissões semanais da rádio, que começam a ser planeadas uns dias antes.

"Normalmente, à terça-feira definimos os temas que vamos abordar, selecionamos a lista de músicas e definimos o alinhamento", conta Lídia Saramago, apontando para o quadro que se encontra na sala, com a sequência prevista para o programa. Pelo meio, há sempre lugar para o improviso, como aquele a que o VM assistiu na emissão que foi para o ar no dia 21 de julho.

Já na segunda parte do programa, ao abordar o tema escolhido para aquele dia - a importância da hidratação em dias de calor -, a dupla de locutores deu alguns exemplos de alimentos que contêm elevadas percentagens de água e referiu a banana. Foi o mote para Tiago pregar uma rasteira à parceira, ao sugerir uma música da cantora popular Rosinha dedicada a esse fruto, que não estava na playlist selecionada.

Mas Lídia não escorregou e manteve-se firme na condução da emissão. Lançou outra música, enquanto procurava satisfazer o pedido. "Sou apologista da diversidade musical. Tenho as minhas preferências, mas considero que devemos passar vários géneros", defende Tiago, já com a Rosinha a tocar.

"É o momento de 'estica o braço' na rádio João Paulo II", brinca Lídia, com a boa disposição que, diz quem a conhece, tão bem a caracteriza. "Esforço-me por isso. Mesmo nos dias menos bons, devemos tentar dar sempre o nosso melhor", afiança. E, nesses dias, conta com o Tiago para "puxar" por ela.

O contrário também acontece, salienta o locutor, que, ainda antes da emissão terminar, há de noticiar a participação de utentes da instituição no campeonato nacional de boccia, marcado para o fim de semana seguinte (dias 23 e 24 de julho) em Vila de Conde. "Estarão presentes eu, a Ana Sofia e o Zé Manel", anuncia. E a reação dos ouvintes não se faz esperar, com mensagens enviadas a desejar "boa sorte". "É bom recebermos o feedback de quem nos está a ouvir. Pelo que fazemos questão de, sempre que possível, dar eco das mensagens que recebemos", refere Lídia Saramago.

Já com o equipamento desligado, Tiago Saraiva, de 35 anos, explica que um dos objetivos da rádio é dar a conhecer o que se faz na instituição e o trabalho dos utentes e dos profissionais, seja em formato de notícia, seja através de entrevista aos protagonistas, como aquela que fizeram recentemente a Diogo Carmo, também a residir no CJPII que acaba de lançar um videoclipe com a música "É a minha vida", com direito a "estreia mundial" na Rádio João Paulo II.

Trata-se de um rap interpretado pelo jovem, de 16 anos, cuja letra resultou de um trabalho que juntou Diogo e algumas técnicas e colegas da instituição. É, frisa Lídia Saramago, "mais um exemplo" de como o centro procura "ir ao encontro das expectativas, sonhos e ambições dos utentes", aproveitando também para trabalhar algumas competências. Por exemplo, no caso do David "estimulou-se a leitura e a escrita", enquanto Tiago treina a dicção, a fala e a componente cognitiva através da pesquisa que faz para os programas, com a ajuda de técnicas da instituição.

"Temos de atender às necessidades dos utentes, mas não podemos ignorar as suas motivações e gostos", reforça Lídia Saramago, referindo que foi essa preocupação que esteve na base da criação da rádio, um desejo antigo de Tiago Saraiva. "Sou muito feliz a fazer rádio. É uma paixão, uma parte importante da minha vida", afirma o locutor momentos depois de desligar o microfone e de se despedir dos ouvintes até à semana seguinte, com um anúncio e que haverá uma nova rubrica, sem relevar pormenores. "Terão de continuar a ouvir-nos para descobrir", brinca Tiago, que, de sorriso rasgado, se confessa "feliz e realizado" quando está no ar.

Voz das Misericórdias, Maria Anabela Silva