Por ocasião do Dia Internacional da Mulher, neste ano de 2023, convidamos à leitura e releitura dos vários textos que compõem a publicação 'Misericórdias no Feminino', organizada e editada pela União das Misericórdias Portuguesas em 2022.

Neste artigo, Mariano Cabaço, responsável pelo Gabinete do Património Cultural da União das Misericórdias Portuguesas, aborda o os atos da benemerência e o "relevante papel das mulheres" nesse contexto.

"Benemerência: O rosto feminino dos donativos

O movimento das Misericórdias, com a sua história secular, sempre foi marcado pela iconografia e representações no feminino, realidade facilmente percetível nas obras de arte que encontramos na maioria das instituições. Talvez pela etimologia da palavra, a própria representação legendada do conceito de misericórdia, que surge por vezes em painéis de azulejo, é feita com recurso a uma imagem de mulher de feição preocupada, atenta aos problemas e, em pose emotiva, segurando, numa das mãos, um ramo de cedro, símbolo da fidelidade a Cristo, tendo a outra mão sobre o peito, numa alusão direta ao coração que se compadece.

Outra representação feminina nas Misericórdias é a que ilustra a visitação de Nossa Senhora a sua prima Isabel, figuração que nos transporta para o grande significado da prontidão gratuita ao chamamento para a ajuda que se reclama. Associado a essa representação está inequivocamente o significado do seu simbolismo, pois representa o ideário e a materialização do ato de misericórdia, que presta pronto auxílio a quem dele está necessitado.

Mas a mais frequente e icónica representação, presente nas bandeiras reais e em grande número de retábulos, é a que nos mostra, na sua majestade celestial, a Virgem Mãe Senhora da Misericórdia, em cujo manto protetor todos, independentemente da sua origem ou classe, se acolhem num refúgio para os males da vida terrena e numa prece para a eternidade em perpétua glória.

Também a representação da Senhora da Piedade, Mater Misericordiae, com seu filho morto no regaço, nos transporta igualmente para um símbolo de misericórdia de uma mãe que, sofrendo a sua dor, se resigna com a entrega de seu filho à morte para redenção da humanidade.

Temos nas Misericórdias ainda uma outra representação iconográfica no feminino que nos é trazida pelos retratos das galerias de benfeitores.

Se as anteriores representações iconográficas, presentes em todas as igrejas das nossas Misericórdias, alimentaram a fé dos crentes e suscitaram a piedade dos benfeitores, esta última representa o tributo à materialização de uma vontade dos que, motivados pelo espírito e missão destas instituições, lhes doaram os seus bens, decidindo tomar parte efetiva deste movimento secular.

É esta realidade que encontramos bem espelhada nas galerias de benfeitores, onde surpreendentemente aparecem inúmeros retratos de mulheres, emprestando uma vez mais um rosto feminino à caridade e à doação e, por essa via, à instituição Misericórdia.

Nesta análise, podemos verificar que os atos de benemerência foram, em grande número, protagonizados por mulheres, o que pode parecer uma disrupção numa organização fortemente dominada por homens. De facto, a partir do modelo fundacional dos “Cem Homens Bons” para criar e dirigir as Misericórdias, a presença masculina prevaleceu por séculos nestas instituições, nomeadamente nos órgãos de administração e na representação institucional.

Mas, é no contexto dos atos da benemerência que vamos ter um relevante papel das mulheres. Porque sobrevivem aos seus cônjuges e ficam detentoras de grandes fortunas, estas mulheres viúvas decidem fazer doação à Misericórdia da sua terra natal ou da localidade onde residiram.

Também mulheres que não casam, que recebem heranças de seus pais, decidem, no final da sua vida, deixar os bens à Misericórdia. Em ambos os casos temos a motivação e a esperança da recompensa divina ao ato benemérito, mas também, certamente, o reconhecimento do trabalho e da missão empreendida pelas Misericórdias. Estas mulheres – esposas, viúvas, filhas, sobrinhas – são protagonistas de enormes gestos de filantropia.

Esta realidade leva-nos à prática e tradição nas Misericórdias de reconhecerem publicamente as benemerências com a colocação de retratos nas suas galerias de benfeitores. Fazer memória e prestar tributo aos que se distinguiram por serviços, obras e doações é uma das características mais nobres e identitárias das Misericórdias. É nas galerias de retratos que surpreendentemente, ao longo de séculos, vamos identificar uma igualdade de tratamento na homenagem e memória feita a homens e mulheres. Ao lado de grande afirmação de poder dos homens, encontramos a presença vincada de retratos de mulheres que agiram por vontade própria. É esta condição de beneméritas que as coloca em igualdade, de presença e destaque, ao olhar público e escrutínio agradecido dos irmãos da Misericórdia.

É interessante verificar que quando a doação é feita pelo casal há, em muitos casos, a preocupação de representar os dois membros em retratos distintos. Podemos referir que a presença feminina das benemerências, muito bem evidenciada nestas galerias de benfeitores, constitui um testemunho, único e valioso, do posicionamento da sociedade em relação à instituição Misericórdia.

Importa saber interpretar o que estes retratos, autênticas obras de arte, nos transmitem, pois, para além da sua expressão plástica e composição material, há todo um manancial de informação que devemos retirar destas representações.

Numa apreciação meramente visual, identificamos as protagonistas das doações, a sua condição social e familiar, bem como o seu testemunho local e respetivas vivências na comunidade.

Neste contexto, e a partir dessas representações iconográficas no feminino, temos a possibilidade e grande oportunidade de estudar, de forma criteriosa e bem documentada, o vestuário, o estatuto social, a ourivesaria, a moda, sem esquecer a evolução da pintura de retrato.

Mas a observação destes retratos deve, sobretudo, levar-nos a uma outra abordagem, que passa pela essência dos atos que representam e que se configuram na decisão suprema destas mulheres fazerem doação dos seus bens à Misericórdia. Mulheres que, sem hesitação, ousaram a radicalidade de querer ajudar o seu semelhante e viram nestas instituições o seu braço avançado para a resolução dos problemas e fragilidades da sociedade.

Nesta equação, podemos referir que as vontades se cruzam e os sentimentos se atraem no feminino, onde o apelo dos afetos mais facilmente de desenvolve e onde o coração mais rapidamente se compadece de injustiças e sofrimentos.

Os gestos destas mulheres convocam-nos a uma enorme homenagem às atitudes de quem não busca o aplauso imediato, nem reivindica recompensas em vida.

No seu íntimo, estas mães, filhas, irmãs, mulheres viúvas, mulheres solteiras, mulheres independentes, assumem um sentido de desprendimento e grande amor ao próximo, porque identificando-se com os valores da Misericórdia, a ela confiam toda a sua existência e o legado de suas famílias.

Herdeiras e responsáveis por grandes fortunas, estas beneméritas podiam dar destinos diferentes aos seus bens, distribuindo diretamente a terceiros, organizando novas instituições, ou até legando às suas paróquias com quem certamente mantinham uma relação espiritual mais intensa de maior vivência da fé e esperança na vida eterna. Assim não aconteceu e é na Misericórdia que esta relação de confiança se materializa, coincidindo inteiramente com a missão da instituição, que regularmente se dirigia à comunidade pedindo a quem podia dar, para posteriormente distribuir a quem mais precisava. Nesta dinâmica, a Misericórdia assume-se como um entreposto na relação de doação, evitando um contacto direto entre quem dá e quem recebe e salvaguardando, deste modo, as invetiváveis e perigosas relações de dependência e humilhação que daí poderiam decorrer.

A atitude destas beneméritas exige um justo reconhecimento e uma homenagem pela coragem e a liberdade de decisão que representa. Mulheres que em muitos casos viveram existências infelizes, em que sociedades patriarcais as remeteram para segundo plano. Mulheres vítimas de preconceitos e hábitos de grande radicalismo de silêncios e de imposição de regras que as anularam e diminuíram. Mulheres que apesar de muitas vezes serem as herdeiras e detentoras dos bens e as responsáveis pela riqueza da família, viram sempre o seu protagonismo e vontade própria relegados a favor do chefe de família como autoridade máxima da casa.

São estas mulheres que, no momento da sua decisão final e em plena consciência cívica, moral e espiritual, protagonizam o grande gesto da doação à Misericórdia.

Apesar do seu percurso de vida e pela sua condição privilegiada, estas mulheres são, ainda assim, motivadas a tomar uma decisão de grande humildade e desapego aos bens terrenos. Podemos ver, nos seus gestos, o apelo do coração pathos que conduz a razão ethos a decidir as benemerências.

Em contraponto às crueldades e adversidades da vida, assumem a amabilidade e o sentido maior do amor pelos outros. Esta bondade de coração, que muitas vezes não foi possível praticar ativamente em vida, conhece, neste ato, a suprema realização espiritual, na convicção de que os bens materiais, deixados à Misericórdia, terão o destino certo para diminuir sofrimentos e ajudar quem mais precisa.

Fortalecidas pela essência das obras de misericórdia e crentes nas virtudes do amor ao próximo, estas mulheres assumem, em cada tempo da sua existência, a consciência e o sentido da fé, ancoradas na esperança da vida eterna. Por isso, realizando a sua vontade, entregam à caridade os bens da sua condição humana.

Porque se reveem nos valores da instituição. Porque admiram a sua missão e o trabalho que desenvolvem na comunidade. Porque confiam na boa utilização dos bens doados. Porque acreditam que, a partir da ação da Misericórdia, podem chegar a todos os mais necessitados e carenciados. Porque no seu íntimo acertam as contas da vida com a liberdade e a decisão de fazer o bem ao seu semelhante.

Mulheres benfeitoras que podemos identificar pelos registos escritos e pelas belíssimas galerias de retratos que as Misericórdias, num gesto de grande tributo e reconhecimento, souberam criar e que orgulhosamente apresentam às gerações futuras.

São retratos, mas, acima de tudo, são testemunhos de solidariedade, são heranças de amor ao próximo que constituem relíquias da vida e história das Misericórdias.

Para todas as mulheres beneméritas, heroínas da compaixão e do bem-fazer, o tributo merecido aos seus gestos e à sua vontade de fazer misericórdia."

'Misericórdias no Feminino' integra uma coleção de seis obras sobre temas estruturais da ação e identidade das Misericórdias, publicada em 2022 com financiamento do Programa Operacional Inclusão Social e Emprego (operação POISE-03-4639-FSE-000849), que contam com a participação de personalidades das mais diversas áreas da sociedade.