Por ocasião do Dia Internacional da Mulher, neste ano de 2023, convidamos à leitura e releitura dos vários textos que compõem a publicação 'Misericórdias no Feminino', organizada e editada pela União das Misericórdias Portuguesas em 2022.

Neste artigo, Maria Antónia Lopes, historiadora da Universidade de Coimbra, destaca como "a maioria dos estabelecimentos de assistência não funcionava sem o trabalho feminino e, por isso, desde a sua origem, a ação das Misericórdias não teria sido possível sem as mulheres". 

"História: Ação das Misericórdias não teria sido possível sem as mulheres

Num processo de acentuada elitização que se explica pelo enriquecimento, prestígio e poder crescentes, no seu compromisso de 1577 a Misericórdia de Lisboa impôs numerus clausus de irmãos que seriam obrigatoriamente maiores de 25 anos, sem sangue judeu, não assalariados, alfabetizados e com tempo livre.

Mas, como salientou Ana Isabel Silva em 2017, “nenhum dos compromissos de Lisboa (1498-1516, 1577 e 1618) proibia expressamente a admissão de mulheres [...]. No entanto, abundam naqueles regulamentos referências exclusivas a irmãos do sexo masculino, quer diretas [...] quer indiretas”. De facto, as mulheres foram arredadas dessa e das outras Misericórdias, ao contrário da prática generalizada de confrarias e ordens terceiras.

Subsistiram, contudo, algumas exceções em Santas Casas de pequena dimensão, como em Sarzedas no século XVIII, Gouveia e Melo nos séculos XVIII e XIX ou Mogadouro no século XIX. Houve, até, mulheres provedoras, situações que se conhecem nas Misericórdias do Montijo, de Arcos de Valdevez e da Feira no século XVII e, já na centúria seguinte, na Santa Casa de Pombal.

Deve-se ao primeiro governo de Fontes Pereira de Melo, por portaria de 6 de dezembro de 1872, de António Rodrigues Sampaio, ministro do Reino, a obrigação de admitir como “irmãos os indivíduos de ambos os sexos”, cláusula a inscrever nos futuros compromissos das Misericórdias, vedando embora às mulheres capacidades eleitorais e – cumprindo-se o enquadramento legal da época – exigindo às casadas a autorização dos maridos.

A inclusão de mulheres nas Misericórdias tinha antecedentes (longínquos e próximos). Em 1797, por falta de irmãos que cumprissem as obrigações do compromisso, a Mesa da Misericórdia de Lisboa obteve autorização para que o governo do Recolhimento das Órfãs, do Hospício do Amparo e do Hospital dos Expostos fosse assumido por senhoras nobres. Pela primeira vez, as mulheres dirigiam importantes estabelecimentos da Santa Casa. Em 1800, surgiu, também em Lisboa, a Real Ordem de Santa Isabel, constituída por 26 fidalgas, que tinha por objetivo superintender ao governo do Hospital dos Expostos. Esta associação teve, porém, existência efémera.

No século XIX, as mulheres das elites iniciavam-se na direção de atividades benemerentes, consideradas aptas para um sexo que era agora idealizado como meigo e cuidador. Invoque-se o Projeto de Regulamento de Saúde debatido nas Cortes Constituintes de 1821-22, que apelava à colaboração das senhoras, “muito mais próprias para vigiarem sobre o bom tratamento dos expostos cujas urgentes precisões reclamam a sua natural sensibilidade”. Ou, outro exemplo, a prática da Misericórdia de Bragança entre 1865 e 1871, fornecendo tecido às senhoras da cidade a quem pedia a confeção de roupas para os pobres, fazendo delas, portanto, colaboradoras ativas da confraria.

Tais inovações prepararam as Misericórdias para o acolhimento das mulheres imposta em 1872. Contudo, muitas tornearam a lei, restringindo as mulheres a um número restrito, ou aceitando-as apenas na categoria dos irmãos honorários e benfeitores. Noutras, embora os compromissos não as excluíssem, terão sido aplicados meios dissuasores à sua entrada, pois várias destas irmandades continuaram a ser exclusivamente masculinas até meados do século XX, chegando a resistir aos valores de igualdade de género trazidos pelo 25 de Abril. Em maio de 1974, a Direção-Geral da Assistência Social intimou algumas Misericórdias a mudar procedimentos porque persistiam em não admitir mulheres ou em exigir autorização dos maridos para o ingresso das casadas.

Casos de maior abertura também se encontram e logo nos anos vinte: em 1927, a Misericórdia da Murtosa, fundada no ano anterior, tinha no seu seio mais mulheres do que homens; a Misericórdia de Elvas consignou a elegibilidade das mulheres em 1926; e no 2.º Congresso das Misericórdias, realizado no Porto em 1929, foi aprovada por unanimidade uma recomendação de concessão de igualdade de direitos e deveres aos confrades do sexo feminino, mas que a maioria das Misericórdias decidiu ignorar.

Trabalhadores e rendimentos das Misericórdias

Continua a divulgar-se que antes do século XX as mulheres não produziam, não se inseriam no mercado laboral, não detinham direitos de propriedade; que como seres frágeis que eram, estavam à mercê dos homens da família, não detendo capacidades legais sobre as suas pessoas, atividades e bens. E por mais aberrante que tal categorização seja, impregna o imaginário atual, indiferente ao que a investigação histórica comprova.

A maioria dos estabelecimentos de assistência não funcionava sem o trabalho feminino e, por isso, desde a sua origem, a ação das Misericórdias não teria sido possível sem as mulheres. De facto, como conseguiriam essas instituições manter hospitais sem enfermeiras, cristaleiras, cozinheiras, padeiras, roupeiras, lavadeiras, serventes? Assistir aos presos sem as trabalhadoras que asseguravam a cozedura do pão, a confeção dos alimentos, a lavagem das roupas? Acolher jovens e adultas em recolhimentos sem regentes, porteiras e criadas? Distribuir esmolas em panos ou roupa sem fiadeiras, tecedeiras, costureiras, adelas? Socorrer os enjeitados sem rodeiras e as centenas ou milhares de amas que acorriam às rodas?

Mas não era apenas pelo trabalho que as mulheres contribuíam para a viabilidade das Misericórdias. Pensemos na sustentação económica destas instituições. Teriam enriquecido no mesmo grau, em imóveis e capitais, se só os homens houvessem testado em seu favor? Se as mulheres não tivessem, como tinham, atributos de proprietárias e de testadoras iguais aos dos homens? Como seria garantido o financiamento regular das Misericórdias sem as rendas das terras, fruto do trabalho conjunto de homens e mulheres? Até que ponto teria diminuído o valor das rendas dos prédios urbanos de que auferiam as Santas Casas se as inquilinas fossem todas despejadas? Ou o montante dos juros da atividade creditícia (quase sempre a principal receita das Misericórdias nos séculos XVIII e XIX) se os empréstimos fossem vedados às mulheres solteiras e viúvas ou se as casadas não permitissem as hipotecas dos bens do casal? E, finalmente, como se procederia ao financiamento das rodas dos expostos sem os impostos indiretos e diretos que eram pagos por todos?

Para que se entenda melhor o que acaba de ser dito, creio ser necessário explicitar pelo menos dois assuntos: como funcionavam a assistência aos expostos e a enfermagem hospitalar antes do século XX.

Em Portugal, o socorro aos expostos pertencia às câmaras municipais e era financiado por contribuições públicas. Contudo, algumas Misericórdias, a começar pela de Lisboa, estavam obrigadas a esse serviço porque haviam incorporado hospitais que já tinham o encargo antes de ser atribuído aos municípios em 1521. Além dessas, mas a título facultativo, várias Misericórdias (Porto, Coimbra, Santarém, etc.) encarregaram-se dos expostos, embora não arcassem com as despesas, que continuavam a ser suportadas por tributos arrecadados pelos órgãos municipais.

As crianças eram deixadas nas rodas dos expostos, junto às quais permanecia sempre uma rodeira e, nas mais movimentadas, algumas amas internas. Logo que possível, entregavam-se a amas de leite que as criavam em suas casas a troco de salário. Aos 12 ou 18 meses cessava a criação de leite, mantendo-se o pagamento às amas até as crianças completarem sete anos. Depois desta idade, como todos os meninos e meninas pobres, deviam trabalhar para pagar sustento e alojamento. Como se percebe de imediato, se retirarmos os serviços administrativos, era o trabalho feminino que assegurava esta vertente assistencial.

Diga-se, também, o que é por demais evidente, mas ainda gera confusões, que as rodas dos expostos nada têm a ver com as dos conventos. Estas serviam para fazer entrar e sair do edifício cartas e pequenos volumes sem que as freiras vissem o interlocutor nem fossem vistas.

Com o mesmo objetivo se adotou esse mecanismo para os expostos e, tal como a religiosa que se postava no interior junto da roda era chamada rodeira, assim o era também a funcionária da roda dos enjeitados. Diga-se, ainda, que ser freira era um modo de vida das elites e nenhuma dessas senhoras estaria disposta a cuidar de bebés. Nem dos filhos cuidariam, se tivessem casado; muito menos de crianças cujas origens se desconheciam. As mesmas razões de status tornavam impossível que se dedicassem aos doentes dos hospitais. Além disso, o imperativo da clausura total e perpétua implicava a proibição de sair do convento e de serem vistas por pessoas do exterior. Basta esta circunstância para que tenhamos de formular a questão óbvia: como seria possível às freiras desempenhar algum papel social na comunidade? Quando as Misericórdias surgiram não pretendiam gerir hospitais, mas logo no reinado de D. Manuel I, e sobretudo no seguinte, anexaram alguns, sendo paradigmática, em 1564, a integração do Hospital de Todos-os-Santos, o maior do país, na Misericórdia de Lisboa. O movimento prosseguiu e, em meados do século XVIII, a maioria dos hospitais portugueses era já administrada pelas Misericórdias – o que fazia sentido, porque os hospitais eram instituições de assistência destinadas aos pobres. A enfermagem era exercida por homens e mulheres sem formação, considerados pessoal menor, sendo imprescindível a contratação de enfermeiras, pois era impensável que homens cuidassem de enfermas. As enfermeiras trabalhavam nas enfermarias femininas e os enfermeiros nas masculinas.

Só nas últimas décadas do século XIX surgiram em Portugal, vindas do estrangeiro, as primeiras religiosas de vida ativa, cujos serviços foram aproveitados por algumas Misericórdias, sobretudo nos hospitais, embora a opção fosse contestada por certos setores da opinião pública ou mesmo no seio das Misericórdias. Compelidas a secularizar-se, no início da Primeira República, as religiosas abandonaram os serviços de enfermagem, mas regressaram rapidamente, reassumindo ou assumindo pela primeira vez essa tarefa em vários hospitais, embora ainda uma minoria. Foi no Estado Novo que a contratação de enfermeiras religiosas para os hospitais das Misericórdias se tornou prática usual.

As socorridas

Por fim, observe-se o universo dos socorridos. Entre os pobres assistidos pelas Misericórdias, na grande maioria urbanos, as mulheres foram uma presença constante. Não porque não trabalhassem, mas porque o sistema, que lhes vedava o ensino oficial, os empregos públicos e os ofícios privados qualificados, produzia elevados contingentes de pobreza feminina. Além disso, as mulheres eram o alvo por excelência do controlo social exercido pela elite beneficente, empenhada no ajustamento dos seus comportamentos àquilo que consideravam ser a conduta da mulher digna. Assim, as Misericórdias reservavam às mulheres respostas assistenciais múltiplas, desde o socorro da fome e da doença ao disciplinamento. Refiram-se as enfermas hospitalizadas, as jovens candidatas a dotes de casamento, as entrevadas, as merceeiras, as peregrinas ou viajantes, as órfãs em internato, as chamadas “arrependidas” e as também chamadas “pobres envergonhadas”, as presas das cadeias comuns, as depositadas compulsivamente em recolhimento, as que suplicavam que lhes enterrassem os familiares por não terem recursos para tal, as peticionárias de esmolas de dinheiro para matar a fome, de roupa para se cobrirem, de visita médica, de remédios da botica, de subsídios de lactação, etc.

Direi, portanto, e em suma, que embora durante séculos as mulheres tivessem sido impedidas de integrar as Misericórdias na qualidade de irmãs, essas instituições não teriam funcionado sem elas, sendo impossível compreender o que foram as Misericórdias se omitirmos a sua presença."

'Misericórdias no Feminino' integra uma coleção de seis obras sobre temas estruturais da ação e identidade das Misericórdias, publicada em 2022 com financiamento do Programa Operacional Inclusão Social e Emprego (operação POISE-03-4639-FSE-000849), que contam com a participação de personalidades das mais diversas áreas da sociedade.