Por ocasião do Dia Internacional da Mulher, neste ano de 2023, convidamos à leitura e releitura dos vários textos que compõem a publicação 'Misericórdias no Feminino', organizada e editada pela União das Misericórdias Portuguesas em 2022.

Neste artigo, Maria Amélia Ferreira, provedora da Misericórdia de Marco de Canaveses, explora em torno de uma ideia central: "Misericórdia é mulher".

"Liderança: Erguer alicerces pelo exemplo de quem é capaz

Esta reflexão visa analisar a progressiva presença de liderança das mulheres nas Misericórdias portuguesas, no âmbito da economia social. E não podemos iniciar esta reflexão sem a referência à fundadora das Santas Casas da Misericórdia. A primeira Misericórdia foi fundada em Lisboa, por ação da Rainha D. Leonor, em 1498. A esta fundação seguiram-se muitas outras, transformando-as em presença de grande importância em diferentes territórios de administração portuguesa. Foram resultado de uma liderança de reconhecimento, de cumprimento de objetivos de serviço aos mais frágeis.

Todavia, este contexto de liderança ainda hoje está longe dos indicadores de igualdade de género na gestão das Santas Casas. Verificando-se que os atos de benemerência foram, em grande número, realizados por mulheres, estas não têm vindo a assumir de modo significativo a liderança das instituições. É pelos atos da benemerência que as mulheres têm tido papel predominante, o que, segundo Mariano Cabaço (2022), se deve à sobrevivência aos seus cônjuges, usufruindo de fortunas que doam generosamente às Misericórdias. E a generosidade, tal como a misericórdia, é um termo feminino. Contudo, a presença masculina prevalece por séculos nestas instituições, nomeadamente nos mais altos cargos. Acresce que durante muitos anos as mulheres foram excluídas dos corpos sociais das Misericórdias, sem acesso à sua liderança. Apesar de algumas exceções, só a partir do final do século XIX é que as mulheres passam a ser legalmente admitidas em algumas Misericórdias, onde a liderança não era situação considerada possível. Nos finais do século XX começa a vislumbrar-se a alteração desta situação.

Corroborando as informações transcritas no trabalho elaborado por Maria de Belém Roseira, há que reforçar neste ensaio de liderança que, de acordo com informação fornecida pelo Gabinete de Comunicação e Imagem da União das Misericórdias Portuguesas (UMP), a evolução da liderança tem sido lenta. Em 2000, o número de provedoras distribuídas pelos diferentes distritos era 29; já os números de 2010 e 2020 são, respetivamente, 44 e 68, também com uma distribuição muito diferente entre os distritos. Sendo já assumido um “ganho”, é ainda parca a feminização na liderança das Misericórdias, cuja distribuição se encontra representada nos mapas seguintes (página 37).

Na publicação “Onde param as mulheres? Presença feminina nas organizações em Portugal 2015” (Estudo Informa D&B, março 2015) são apresentados os seguintes valores relativos à presença feminina no setor social e cooperativo – Misericórdias: 79% - funções de direção feminina; 19% - funções de gestão feminina; 11% - liderança feminina.

A situação não é muito díspar do contexto nacional de lideranças em organizações onde as mulheres, representando 48,6% da população ativa em Portugal, ocupam apenas 27,4% dos cargos de liderança (desempenho da gestão nas organizações).

É notória a evolução da presença progressivamente mais significativa de mulheres nas Misericórdias portuguesas. Se em contexto de “normalidade social” já é uma temeridade assumir esta liderança, é evidente a coragem assumida nos últimos anos quanto à participação das mulheres nas organizações do setor social, tendo em conta o contexto de pandemia (“Igualdade de Género”, Ana de Freitas), assinalando-a como um dos 17 Objetivos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU.

Em março de 2019, o jornal Voz das Misericórdias publicou uma peça que é um olhar sobre esta situação, assinalando que “nas 387 Misericórdias ativas em Portugal, que apoiam cerca de 165 mil pessoas e que contam com mais de 45 mil colaboradores diretos, mais de 80% destes são mulheres”. Estão na linha da frente no cuidar do setor mais frágil da sociedade portuguesa. É liderança afetiva. E, em 2021, 69 destas Santas Casas são lideradas por mulheres: as provedoras.

Ainda que, cada vez mais, a sociedade esteja mais consciencializada sobre a importância da igualdade de género, “é com demasiada frequência que (…) a maioria são homens”. Esta situação é plasmada no contexto de liderança masculina nas Misericórdias portuguesas. Contudo, as Misericórdias são femininas, com uma força laboral composta maioritariamente por mulheres. São mulheres, são mães, são mestres na arte de cuidar e de se dar. Estou certa de que a corporização da esperança da humanidade é a mulher. Sem ela, ocorreria muito mais rapidamente a exterminação massiva dos nossos mais frágeis, em tempo de desafio pandémico de Covid-19. E quantas de todas elas tiveram momentos na vida em que, fazendo um balanço, sentiram que ficaram muito aquém dos seus sonhos. Para se dar, para cuidar dos outros.

O cenário parece estar em mudança, pois em 2020 já 68 mulheres são provedoras nas Misericórdias portuguesas, ganhando espaço e respeito. Ser mulher é sinónimo de determinação e esforço. A liderança feminina é caracterizada por parâmetros bem reconhecidos nas nossas provedoras: orientação para as pessoas, tendência à cooperação, capacidade de executar múltiplas atividades, liderança inclusiva, predomínio da empatia, maior predisposição à mudança.

Contudo, conforme assinalado por Alcides Monteiro no trabalho “As mulheres na economia social: no centro da ação, longe da decisão” (agosto de 2021), assinala-se que “face ao imobilismo da realidade, é crucial que as organizações da economia social assumam para dentro o que têm defendido para fora, nomeadamente no que concerne à promoção da igualdade e da equidade, na luta contra a discriminação e a desigualdade”. O relatório “Retrato da Mulher no Setor Cooperativo Português” (CASES, 2021) assinala exatamente estes aspetos diferenciadores relativos à liderança onde, no conjunto dos órgãos sociais, é mantida a predominância masculina.

Misericórdia é mulher. As mulheres têm forte presença nas organizações da economia social e solidária. Apesar da forma desigual das posições de liderança, o terceiro setor tem vindo a desempenhar um papel importante na criação de oportunidades para as mulheres. Por questões estruturais da sua neurobiologia: as mulheres possuem “características como a generosidade, capacidade de comunicação, liderança participativa e cooperativa, capacidade para negociar e resolver problemas com empatia”. O segredo do sucesso é usar o poder da inteligência emocional, com sensibilidade e eficiência, para formar equipas que se comprometam a realizar objetivos comuns. Neste âmbito, um dos desafios que se colocam às mulheres é a nível da conciliação do trabalho na liderança das organizações do setor social – cada vez mais profissionalizante – com as suas ocupações profissionais primárias (dado que esta liderança é atividade pro bono) e da família. É fundamental perceber de que forma a mulher concilia os diferentes papéis que desempenha na vida quotidiana. Os resultados de alguns estudos sugerem que a liderança feminina se caracteriza por alguns desafios, nomeadamente as dificuldades a nível pessoal, familiar e profissional. Contudo, as oportunidades surgem através do apoio que as mulheres recebem, pela interligação das características individuais e também pela capacidade de criar estratégias que permitem conciliar a vida pessoal e profissional (“A Liderança Feminina em Portugal: um Estudo Qualitativo”. M. P. Taveira. Tese de mestrado em Gestão e Desenvolvimento de Recursos Humanos, 2018).

Misericórdia é humanidade (também este um termo feminino). Acredito que as mulheres têm uma perceção muito especial da humanidade, exercida em vários estilos de liderança, face às funções desempenhadas nestas organizações, nomeadamente o estilo democrático combinado com o estilo de liderança mais diretiva (“Estilos de Liderança dos Profissionais do Serviço Social em Instituições Particulares de Solidariedade Social”. A. M. Semedo. Mestrado em Serviço Social em Gestão de Unidades Sociais de Bem-Estar. Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, 2015).  

Ser mulher traz vantagens adicionais para a flexibilidade no exercício desta tarefa, no exercício da inteligência emocional. No tempo de Covid-19, quem melhor que as mulheres soube escrever as histórias da vida real? Nos lares, nas creches, nos centros de dia, nos apoios domiciliários, nas cozinhas, nas direções técnicas das respostas sociais, no apoio psicológico, na enfermagem, na rede de cuidados continuados. Mantiveram o desafio de equilibrar a capacidade de sonhar com o planeamento e a execução rigorosa que a concretização dos planos de contingência implicou diariamente.

Nestas funções construíram o legado futuro dos valores da generosidade, da dedicação, da competência, da determinação e da resiliência. Todas estas qualificações são termos femininos. E ergueram os alicerces para mais forte liderança (também termo feminino), pelo exemplo de quem é capaz. E é de salientar que as provedoras – as 68 mulheres de 2020 – são as heroínas desta nossa nova história coletiva que irá mudar o nosso olhar sobre as relações humanas, sobre o mundo, sobre a liderança feminina, sobre o significado da humanidade.

Termino, como já o fiz previamente em texto para o jornal Voz das Misericórdias, “As mulheres nas Misericórdias: reconhecimento em tempo de Covid-19”: “A coisa mais parecida com os olhos de Deus são os olhos de uma mãe” (Tolentino de Mendonça – “Uma beleza que nos pertence”, 2019). Mantenho o que então disse: “São os olhos das nossas mulheres, das mulheres das nossas Misericórdias.”

'Misericórdias no Feminino' integra uma coleção de seis obras sobre temas estruturais da ação e identidade das Misericórdias, publicada em 2022 com financiamento do Programa Operacional Inclusão Social e Emprego (operação POISE-03-4639-FSE-000849), que contam com a participação de personalidades das mais diversas áreas da sociedade.