Por ocasião do Dia Internacional da Mulher, neste ano de 2023, convidamos à leitura e releitura dos vários textos que compõem a publicação 'Misericórdias no Feminino', organizada e editada pela União das Misericórdias Portuguesas em 2022.

Neste artigo, Maria de Belém Roseira, ex-presidente da Mesa da Assembleia Geral da UMP e ex-ministra da Saúde, presta reconhecimento à Rainha D. Leonor enquanto fundadora das Santas Casas da Misericórdia, destacando uma de "inúmeras realizações de relevo da autoria de mulheres – muitas vezes escondidas sob um pseudónimo masculino – que contribuíram para o desenvolvimento coletivo."

"Rainha D. Leonor: A vanguardista dos direitos humanos

Por coincidência ou talvez não, escrevo este artigo já muito perto do início do mês de março durante o qual se comemora o Dia Internacional da Mulher, efeméride esta que só é assinalada por causa das desigualdades de estatuto de que a mulher ainda hoje continua a ser vítima.

E este artigo visa, precisamente, trazer de novo à tona, para que lhe seja prestado público reconhecimento, uma mulher, rainha de Portugal, a Rainha D. Leonor, enquanto fundadora das Santas Casas da Misericórdia, uma das mais antigas e notáveis instituições portuguesas.

Todos sabemos que o papel das mulheres na história da humanidade foi propositadamente apagado, fosse no domínio político, fosse no domínio cultural e científico. Contudo, a investigação que tem vindo cada vez mais a ser produzida traz à luz do dia as inúmeras realizações de relevo da autoria de mulheres – muitas vezes escondidas sob um pseudónimo masculino – que contribuíram para o desenvolvimento coletivo.

Mais uma razão para dar realce e visibilidade a uma mulher que nasceu em 1458 – por consequência numa época em que às mulheres estavam reservados papéis meramente secundários e sem visibilidade – e que soube ler a realidade do seu tempo e usar a sua posição e as oportunidades que a vida lhe deu, não para proveito próprio, mas antes para a construção de várias obras de interesse público. Sensível, visionária e vanguardista, criou o primeiro hospital termal do mundo em 1485 e, instada pelo sofrimento dos que à época tinham ficado para trás, idealiza e concretiza a notável instituição Santas Casas da Misericórdia, obra que dela fez uma mulher inapagável na história de Portugal.

Pelos seus atributos de formosura de rosto e de coração, chamaram-lhe a Princesa Perfeitíssima, casada que era com D. João II, o Príncipe Perfeito. Mas se este foi um visionário que alcandorou Portugal na liderança de um império de prestígio mundial, D. Leonor foi o amparo daqueles a quem a condição não sorriu. Até porque foi marcada por toda uma série de infortúnios pessoais que poderiam tê-la tornado revoltada, mas antes fizeram dela uma pessoa sensível ao sofrimento alheio.

É interessante recordar o discurso de Almeida Garrett, na Câmara dos Pares, em fevereiro de 1854, em defesa das Misericórdias em geral e da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa em particular: “Temos em Portugal uma instituição que nos honra, que tem sido louvada, invejada por todos os povos, que é a melhor instituição que eu conheço, que nasceu com a monarquia, ou antes veio à luz na sua virilidade e robustez, que a acompanhou por todas as partes do mundo, que a seguiu aos mais remotos confins do globo, onde ela foi levar a cruz e a civilização, o evangelho e o comércio, a liberdade e as suas colónias. Em nenhum país da terra há instituição filantrópica superior, nem igual! Nenhuma nação teve ainda reis ou leis que fizessem de iguais instituições uma condição social tão genérica, tão uniforme e, por consequência, tão fácil de vigiar e fiscalizar.”

Como se verifica, neste discurso encomiástico relativo às Misericórdias portuguesas e à sua originalidade, não há uma referência à sua fundadora.

E, no entanto, teria sido esta instituição possível, na sua missão institucional e no seu modelo organizacional, na época em que foi fundada (século XV) se não fosse por uma mulher? Creio que não, e justifico.

A Rainha D. Leonor, para além de cultíssima, era profundamente crente. Disso deu prova durante toda a sua vida e sobretudo no que pretendeu para a sua morte: uma campa rasa de fria e nua pedra, num lugar de passagem para que todos a pisassem, no claustro do Mosteiro da Madre de Deus, em Xabregas, apenas com o seu nome inscrito e sem qualquer referência a título nobiliárquico ou honorífico.

Não poderia, pois, ser-lhe indiferente a miséria que grassava pelo país devido aos esforços de natureza vária que foi necessário envolver na epopeia das Descobertas. Na verdade, esta só foi realizável graças ao conhecimento científico da época, em grande parte detido pelos judeus que eram, também, os seus grandes financiadores, e mercê do recrutamento e mobilização dos homens cuja força física era indispensável à navegação.

Com os naufrágios, por um lado, e a necessidade de povoar os novos mundos que se deram ao mundo, por outro, essa força humana ou perecia ou não regressava a Portugal. Em consequência, as situações de viuvez e orfandade, bem como o abandono do cultivo dos campos sem braços para os trabalharem, deram origem a uma miséria muito dura e alargada que fez acorrer às cidades, e designadamente à cidade de Lisboa, multidões de desvalidos em busca de trabalho e pão.

Foi com este contexto de grande e pungente sofrimento social daqueles com quem apenas foram partilhados os custos e não as riquezas decorrentes dos Descobrimentos que a Rainha D. Leonor se confrontou e a ele não ficou indiferente. Inspirada pelo seu confessor Frei Miguel Contreras, concebeu a criação das Misericórdias como instituição amparadora da tragédia humana que observava, tendo começado pela de Lisboa e, logo a seguir, a do Porto, num movimento que se espalhou pelo país e, progressivamente, por todos os domínios portugueses no mundo.

De notar, contudo, que a Misericórdia de Lisboa foi fundada em 1498. Não por acaso, quando seu irmão, o Rei D. Manuel, se encontrava em Espanha e ela era regente do reino. Detinha, pois, o poder executivo e exerceu-o fundando uma instituição que tinha como missão a prática das 14 obras de misericórdia – sete corporais e sete espirituais – e cujos estatutos, inspiradamente chamados de compromisso, estabeleciam que a sua gestão pertencia aos leigos e não à Igreja, através de um órgão chamado de Mesa, o que faz apelo à partilha do alimento, fosse ele corporal ou espiritual.

De sublinhar que, de acordo com o compromisso, deste órgão de gestão não podiam fazer parte pessoas que tivessem “precisão” da ação da Santa Casa. Esta era a forma de garantir que trabalharia em prol daqueles para cujo amparo tinha sido criada, os necessitados, e não para os que mandavam na instituição.

Repare-se, portanto, na filosofia deste modelo:

• Distribuição da riqueza por quem a detinha a favor dos mais carenciados, pois os ricos foram os grandes financiadores das Misericórdias, quer em vida quer por morte, através de generosas doações e legados que realizavam. Seguindo, aliás, o exemplo da rainha que punha os seus avultados bens ao serviço das causas que defendia, pois levava uma vida modesta e sem apego aos bens materiais;

• Transparência na gestão, porque era feita por quem não precisava de roubar porque muito tinha e ser provedor da Misericórdia era um lugar de prestígio que não podia ser manchado;

• Separação entre a Igreja e o Estado, em época em que o poder secular e o poder temporal estavam interligados;

• Ação exercida de forma transversal e não vertical (14 áreas de ação), o que corresponde a uma visão da abordagem global da pessoa e dos seus problemas que só modernamente começa a ser inserida na formulação das políticas públicas, estando, contudo, ainda longe de se constituir como prática alargada e integrada na ação.

Considero que prioridades desta natureza não constituiriam a preocupação, à época, do exercício do poder no masculino. Este estaria mais centrado no domínio puro do poder político e na construção de alianças para a sua conservação e expansão, independentemente das consequências sociais.

Considero, ainda, que a Rainha D. Leonor, várias vezes regente do reino ao longo da sua vida, sabia que tomar a decisão de criar instituições com um modelo com estas características só poderia ser feito quando detivesse o poder sem constrangimentos, colocando todo o seu prestígio e autoridade na sua justificação.

Tinha, pois, razão Almeida Garrett quando afirmava: “Em nenhum país da terra há instituição filantrópica superior, nem igual!”

Como acima referi, ser provedor de Misericórdia, ou mesmo apenas membro da sua Mesa Administrativa, era uma função de enorme prestígio social. Tinha lugar reconhecido no protocolo, nacional ou local. Razão pela qual o desempenho dessas por mulheres, que era admitido no início – ou não tivesse sido o movimento de iniciativa de uma mulher –, foi interditado pouco depois e só muito recentemente entrou na normalidade.

Na verdade, de acordo com um artigo científico de 2015, da autoria da historiadora Maria Antónia Lopes, intitulado “Musealizar misericórdias conhecendo a sua história”:

“Inicialmente, podiam ingressar nas Misericórdias, como em qualquer outra irmandade, homens e mulheres sem número limite. Depois de 1577 o novo compromisso de Lisboa impôs numerus clausus e interditou a admissão de mulheres, judeus, menores, assalariados e analfabetos. O processo de elitização é evidente. Mas em muitas povoações era impossível preencher a irmandade se fossem excluídos os iletrados. Por isso eles serão uma presença vulgar nas terras mais pequenas. Quanto ao cristãos-novos, ‘pese embora a proibição (...), aqui e ali continuaram a admitir-se, provando a permeabilidade existente, a dificuldade em os segregar definitivamente e o esforço que os descendentes dos judeus convertidos à força faziam para ocultar a sua origem, utilizando, entre outras estratégias, a ostentação do estatuto de irmãos de uma Misericórdia’.

Foi o Marquês de Pombal que, pela lei de 25 de maio de 1773, proibiu a discriminação dos cristãos-novos, o que se patenteia nos compromissos das Misericórdias anteriores a essa data, onde as interdições raciais se encontram truncadas. Também se sabe que houve algumas exceções em relação às mulheres, chegando a haver provedoras, como aconteceu no século XVII pelo menos nas vilas da Feira e de Aldeia Galega do Ribatejo (atual Montijo), e que numa data tão tardia como 1818, a Misericórdia do Mogadouro acolhia mulheres como membros da irmandade. Será só a partir do último terço do século XIX que as mulheres passam a ser legalmente admitidas em algumas Misericórdias, num difícil processo que em alguns casos se prolongou até à década de 1980.”

Na verdade, apenas nos finais do século XX se regista a alteração deste paradigma.

Transcrevo aqui, também, o excerto de um artigo publicado em 2007 no Voz das Misericórdias, cuja leitura é muito elucidativa: “Helena Serra, provedora da Santa Casa da Misericórdia de Albufeira, abriu o caminho. Há 29 anos foi eleita provedora, quando nos estatutos da União das Misericórdias Portuguesas (UMP) ainda não estava prevista, sequer, a presença feminina nas Mesas Administrativas. ‘Você não pode ser provedora’, foi o que Helena Serra ouviu do então presidente da assembleia-geral da UMP, José Manuel Basso. Contudo, a escolha dos irmãos daquela Santa Casa era legítima. Assim, os estatutos foram revistos para que elas pudessem liderar os corpos sociais.”

Atualmente, e de acordo com informação amavelmente fornecida pelo Gabinete de Comunicação e Imagem da União das Misericórdias Portuguesas, “em 2021 tínhamos 69 provedoras no território nacional, sendo que Bragança é o único distrito onde há apenas provedores. Sabemos que o número tem vindo gradualmente a aumentar ao longo dos anos. Em 2004 eram 18, em 2007 tínhamos 36 e hoje são 69 as senhoras à frente das Mesas Administrativas. Sobre o número de mesárias, não conseguimos apurar quantas são, mas sabemos, por observação e troca de impressões, que são cada vez mais. A primeira provedora no século XX foi Helena Serra, de Albufeira, cuja tomada de posse foi em 1978”.

Enquanto presidente que fui da Mesa da Assembleia Geral da União das Misericórdias Portuguesas durante vários mandatos, foi para mim muito interessante assistir à progressiva feminização deste universo. Não porque ele seja ou deva ser um especial reduto para as mulheres, mas, simplesmente, porque foi preciso chegarmos ao século XX para que, mercê do princípio da igualdade consagrado na Constituição portuguesa de 1976, as mulheres tivessem podido recuperar um direito que já lhes pertencia no século XV, quando o movimento das Misericórdias foi fundado pela Rainha D. Leonor, e lhes foi expressamente vedado em 1577.

Aquilo que hoje nos parece inimaginável e absurdo de acordo com os padrões atuais, já o era há mais de cinco séculos para a vanguardista dos direitos humanos, a Rainha D. Leonor, a Princesa Perfeitíssima."

'Misericórdias no Feminino' integra uma coleção de seis obras sobre temas estruturais da ação e identidade das Misericórdias, publicada em 2022 com financiamento do Programa Operacional Inclusão Social e Emprego (operação POISE-03-4639-FSE-000849), que contam com a participação de personalidades das mais diversas áreas da sociedade.