Por ocasião do Dia Internacional da Mulher, neste ano de 2023, convidamos à leitura e releitura dos vários textos que compõem a publicação 'Misericórdias no Feminino', organizada e editada pela União das Misericórdias Portuguesas em 2022.

Neste artigo, Isabel Figueiredo, diretora do Secretariado Nacional das Comunicações Sociais, fala sobre "a importância das Misericórdias para a vida profissional das mulheres, partindo dos pontos que caracterizam o conceito de rede social."

"Rede Social: Sementes lançadas por mãos femininas

Há sempre um sentimento de gratidão quando nos convidam para participar num projeto que em muito nos ultrapassa, quer pela realidade que traduz, quer pela companhia que encontramos ao nosso lado, estejamos a partilhar o palco de um auditório, uma mesa redonda sobre algum tema ou as páginas de um livro. Também por esta razão, quero começar exatamente por formalizar a minha gratidão pelo convite que me foi feito para participar nesta publicação, sob o título ‘Misericórdias no Feminino’ e, mais explicitamente, com o tema “Rede social: a importância das Misericórdias para a vida profissional das mulheres”.

Honrada pelo convite gostaria também de deixar claro que o extraordinário universo das Misericórdias não faz parte do meu dia a dia, nem da minha vida profissional. No entanto, acredito que a minha formação em História me permita um outro olhar para aquilo que as Misericórdias representam em termos de património histórico, humano, artístico, solidário e inovador. Por outro lado, o facto de trabalhar no mundo da comunicação social há cerca de 30 anos levou-me de imediato a procurar informação sobre as Misericórdias e a encontrar uma definição sobre o conceito de ‘rede social’.

No site da Segurança Social a definição é clara: “A rede social é um programa que incentiva os organismos do setor público (serviços desconcentrados e autarquias locais), instituições solidárias e outras entidades que trabalham na área da ação social, a conjugarem os seus esforços para prevenir, atenuar ou erradicar situações de pobreza e exclusão e promover o desenvolvimento social local através de um trabalho em parceria.” E na minha busca pelo mundo digital encontrei sites atualizados, utilização regular e com qualidade das redes sociais, histórias de vida contadas em vídeo, notícias. E mulheres, muitas mulheres!

Mas ainda em jeito introdutório, gostaria de partilhar que a matriz cristã das Misericórdias faz ecoar no meu coração de crente a tão conhecida lista de obras de misericórdia que muitos de nós aprendemos na catequese e que tão bem traduzem o que Jesus nos pediu em vida e, que ao longo dos séculos, milhares de homens e mulheres procuraram honrar, tantas vezes com as suas próprias vidas. A escrita deste texto fez-me pensar em como as obras de misericórdia, corporais e espirituais, oferecem a visão de um equilíbrio permanente entre o corpo e a alma, que permanece surpreendentemente atual, quer nas necessidades, quer nas consequências que delas advêm para os próprios e para todos os que usufruem da sua prática.

Diria que somos verdadeiramente privilegiados por termos na nossa história “uma” Rainha D. Leonor que, em 1498, fundou a Misericórdia de Lisboa. Apesar de todos os relatos, que já se escreveram sobre aquele período, dificilmente conseguiremos imaginar as reais condições de vida de uma cidade que, apesar da expansão marítima que nos trouxe mundo e riqueza, vivia a pobreza e a miséria numa dimensão nunca vista.

Julgo não estar a exagerar na ficção das palavras, ao sugerir o espanto da Rainha D. Leonor se pudesse adivinhar que, ao dia de hoje, e segundo o que está escrito no site da União das Misericórdias estão atualmente ativas em Portugal 387 Misericórdias, que “apoiam diariamente cerca de 165 mil pessoas e, para o efeito, contam com mais de 45 mil colaboradores diretos”.

Não conseguimos erradicar a pobreza, nem a doença, nem deixámos de ter viúvas e órfãos. Mas as Misericórdias não pararam de se multiplicar, potenciaram extraordinariamente o número de ajudas, criaram novas valências e sente-se uma permanente e determinada vontade de renovação.

E é aqui, nesta vontade permanente e determinada de renovação, que me situo ao falar sobre a importância das Misericórdias para a vida profissional das mulheres, partindo dos pontos que caracterizam o conceito de rede social. Entre as diversas tarefas que desempenho no meu local de trabalho, há uma que faço com um gosto muito especial, que é a de acompanhar todas as campanhas de solidariedade de que a Renascença foi pioneira, enquanto órgão de comunicação social, e que se continuam a fazer de forma regular há mais de 25 anos.

Este trabalho tem-me permitido conhecer inúmeras instituições, muitas delas Misericórdias, e sentir quase de forma palpável o papel das mulheres nestas instituições, numa transição tantas vezes natural de um trabalho voluntário para um trabalho profissional. Acompanhei equipas constituídas por mulheres de gerações diferentes. Recentemente tenho sido surpreendida por um número crescente de raparigas e jovens mulheres, profissionalmente muito qualificadas, que se entregam de alma e coração a trabalhos sempre exigentes, estejamos a falar de idosos, de crianças com deficiência ou de jovens em situação de risco. Quase parece que na linha da frente, sem medos, nem complexos, avançam neste caminho de desenvolvimento social que todos desejamos teoricamente, mas que é tão mais complexo na prática do dia a dia.

Aconselho vivamente a quem ainda não o fez, a ver a série de vídeos que estão disponíveis no site da União das Misericórdias e que se agrupam sob o título “A Vida dos Outros”. Em poucos minutos ficamos com uma ideia clara sobre a riqueza que temos entre nós, se calhar para muitos, desconhecida. A diversidade de respostas sociais dadas pelas Misericórdias, a pluralidade de pessoas que dão e que recebem, a alegria que se consegue sentir apesar da velhice, da doença ou da pobreza são surpreendentes e consoladoras.

Mas voltando à questão da capacidade das Misericórdias terem um papel ativo e decisivo nas mulheres, cuja vida profissional se situa no âmbito do desenvolvimento social, uma reflexão sobre o passado e um olhar sobre o presente ajudam-me a concluir que, de uma forma geral, as questões que se situam no plano das carências encontram uma resposta diferenciada e diferenciadora na razão e no coração de uma mulher. Não é mais, nem é menos, é diferente. Não será certamente a dimensão da maternidade, não é condição de exclusividade. Também não gostaria de me focar nas questões da sensibilidade. É quase orgânico.

As Misericórdias são a evidência disto mesmo. Basta passar um olhar atento pelas redes sociais para o perceber. Diria que é sempre preciso uma boa semente e um terreno fértil, rasgado e cultivado para termos frutos, capazes de se tocarem, de se mastigarem e saborearem. De alguma forma, as Misericórdias têm sido, ao longo dos séculos, este terreno fértil que é preciso cuidar, regar, inovar. E neste terreno, as sementes são lançadas, de forma regular, permanente, cuidadora, por mãos femininas. Não é uma conclusão sentimental, nem superficial. É o que vejo com cuidado, o que leio com tempo, o que escuto de forma isenta, mas atenta.

Não poderia terminar sem partilhar uma outra reflexão que a escrita deste pequeno texto me proporcionou, isto é, há sempre um outro lado da moeda e penso nos milhares de mães, de filhas, de cuidadoras que deixam os seus filhos, os seus pais, as suas madrinhas entregues ao cuidado de uma valência de uma Misericórdia. Penso nas filhas, que conseguem trabalhar todo o dia porque sabem que a sua mãe, que vive sozinha, vai receber a visita diária da uma equipa profissional, capaz de um sorriso, de um toque de ternura; penso nas jovens mães, que deixam os seus bebés tranquilas e enfrentam cargas horárias de trabalho excessivas; penso em tantas senhoras que, apesar do peso dos anos, têm a seu cargo a capela da sua terra e mostram com orgulho as obras de recuperação de um património único… todas elas, de formas tão diferenciadas, usufruem da essência da natureza das Misericórdias, numa permanente reconstrução que visa sempre o futuro, nunca esquecendo o passado.

A vida profissional das mulheres é uma realidade objetiva, assim como a rede social é uma realidade conquistada. O reconhecimento de ambas, na relação fecunda que existe entre elas, desde a criação da primeira Misericórdia em Portugal, é um motivo de alegria e gratidão para todos nós, que falamos português, que nos orgulhamos da nossa terra, dos nossos valores, do nosso património, da nossa história, da nossa gente."

'Misericórdias no Feminino' integra uma coleção de seis obras sobre temas estruturais da ação e identidade das Misericórdias, publicada em 2022 com financiamento do Programa Operacional Inclusão Social e Emprego (operação POISE-03-4639-FSE-000849), que contam com a participação de personalidades das mais diversas áreas da sociedade.