O papel desempenhado pelas mulheres nas Misericórdias tem vindo a mudar. De grupo socialmente frágil, passaram a assalariadas e hoje lideram 63 instituições

Nos primórdios, podiam ingressar nas Misericórdias, à semelhança de outras irmandades, homens e mulheres batizados, sem número limite. A partir de 1577, o novo Compromisso de Lisboa veta a admissão de mulheres, enquanto irmãs, e impõe, segundo a historiadora Maria Antónia Lopes, “numerus clausus de irmãos, que seriam obrigatoriamente do sexo masculino, maiores de 25 anos, sem sangue judeu, não assalariados, alfabetizados e com tempo livre”.

Subsistiram, porém, exceções nas terras mais pequenas, continuando a admitir-se mulheres em Sarzedas (até meados do século XVIII), Angra do Heroísmo (exclusão a partir de 1605), Melo e Gouveia (pelo menos entre 1720 e o primeiro terço de oitocentos), Aldeia Galega (atual Montijo) e vila da Feira, onde chegaram a ser eleitas provedoras no século XVII.

Daí em diante, esse papel é relegado para segundo plano, até desaparecer quase por completo, restringindo-se a participação às viúvas de irmãos. No século XVIII, mesmo as confrarias que as admitiam conferiam-lhes papéis subalternos, vedando-lhes o acesso a cargos de chefia. Enquanto pilar do poder local, as Misericórdias eram, como tal, irmandades masculinas, numa época em que, segundo Isabel dos Guimarães Sá, “a caridade ocupava um lugar demasiado central para ser deixado ao cuidado das mulheres”.

Será apenas a partir do século XIX, que as mulheres passam a ser legalmente admitidas em algumas Misericórdias, num processo que se prolonga por mais de cem anos. Na primeira metade de oitocentos, começam a ser registadas em Ponte de Lima as mulheres de novos irmãos e surge a primeira mulher, entre a figura dos irmãos beneméritos de Bragança. De 1865 a 1871, esta Santa Casa pede a colaboração das “senhoras da cidade” na confeção de roupas para os pobres, “fazendo delas colaboradoras ativas da confraria”.

Alguns compromissos de finais do século XIX (Viana do Castelo) passam a admiti-las, mas sem acesso ao exercício do poder. Além disso, podia ser-lhes imposto um número restrito de lugares como em Arganil, cujo compromisso de 1882 definia o limite de 220 irmãos e 12 irmãs.

Estas mudanças graduais preparam as Misericórdias para o acolhimento de mulheres, mas não têm efeito imediato. Até 1953, nenhuma mulher tinha ingressado em Pombal, embora o novo compromisso autorizasse o acesso desde 1913, e só no final da década de 1980 a Misericórdia de Penela tem confrades do sexo feminino. Apesar da recomendação de igualdade de direitos e deveres, aprovada no Segundo Congresso Nacional das Misericórdias (1929), em 1970 ainda havia Misericórdias (Sortelha) onde as mulheres não eram elegíveis nem eleitoras.

Enquanto prestadoras de serviço, Isabel dos Guimarães Sá refere que as mulheres tiveram um “papel apagado” enquanto “praticantes de obras de misericórdia”, uma vez que “só os homens tinham obrigação de as cumprir”. As poucas referências existentes dizem respeito ao “pessoal assalariado”, onde se incluem “amas de expostos, hospitaleiras (mulheres dos hospitaleiros) ou servidoras domésticas (amassadeiras, aguadeiras, lavadeiras, cristaleiras)”. 

Em 1797, por falta de irmãos que cumprissem as obrigações do compromisso, a Misericórdia de Lisboa obtém autorização para que a gestão do Recolhimento das Órfãs, Hospício do Amparo e Hospital dos Expostos seja assumida por mulheres nobres. Para Isabel dos Guimarães Sá, esta colaboração inicia um modelo em que as mulheres “passam a ser imprescindíveis na atividade assistencial”, tornando-se presença constante nas “instituições de benemerência tipicamente liberais”.

Uma vez alterados hábitos de sociabilidade, Maria Antónia Lopes menciona que as mulheres deixam de estar confinadas ao lar enquanto “espaço de clausura, recato, silêncio e trabalho” e passam a frequentar o espaço exterior para fruição de espetáculos, bailes públicos e passeios.

As próprias religiosas abandonam a clausura para se dedicar à assistência aos pobres. Nas últimas décadas de oitocentos, e pelo menos até meados do século XX, o serviço de enfermagem de alguns hospitais (Évora, Elvas, Santarém, Lamego, Vila Real, Vila Nova de Famalicão, Viana do Castelo, Arcos de Valdevez) passa a ser assumido por ordens religiosas femininas, geralmente Franciscanas Hospitaleiras.

No que diz respeito à assistência prestada às mulheres, durante a Idade Moderna, destaca-se a ajuda às órfãs em idade de casamento, viúvas e velhas, sendo ainda prática comum a assistência às doentes, presas e viandantes. Consideradas frágeis e incapazes de conservar a sua honra, as mulheres eram auxiliadas em várias etapas da sua vida e, em muitos casos, guardadas em recolhimentos, longe dos homens, onde lhes eram impostas normas severas para garantir o bom comportamento.

A historiadora Marta Lobo de Araújo relata que em Portugal, as Misericórdias das principais cidades administravam recolhimentos (Braga, Porto) e distribuíam dotes de casamento às órfãs (Penafiel, Coimbra, Évora etc.), ensinando-as a “ser boas esposas, fazer trabalhos manuais e a viver para Deus”. Nalguns casos aprendiam a ler e a escrever. Mais do que combater a miséria social, este tipo de prática procurava “salvar as dotadas da corrupção”, como refere a mesa da Misericórdia de Coimbra, numa ata de 1849.

Laurinda Abreu destaca ainda o apoio prestado às providas e visitadas, um “grupo socialmente heterogéneo, quase sempre composto por mulheres, normalmente sozinhas, mas nem sempre viúvas”, que tinham direito a uma pensão mensal, apoio médico na doença e enterro gratuito.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas

Bibliografia

Araújo, Maria Marta Lobo (2008), A assistência às mulheres nas Misericórdias portuguesas (séculos XVI-XVIII), Nuevo Mundo Mundos Nuevos.

Abreu, Laurinda (2002), As Misericórdias: de D. Filipe I a D. João V in Portugaliae Monumenta Misericordiarum 1, Lisboa, Universidade Católica/UMP.

Lopes, Maria Antónia (1989), Mulheres, espaço e sociabilidade. A transformação dos papéis femininos em Portugal à luz de fontes literárias, Lisboa: Livros Horizonte.

Lopes, Maria Antónia (2002), As Misericórdias de D. José ao final do século XX in Portugaliae Monumenta Misericordiarum 1, Lisboa, Universidade Católica/UMP.

Lopes, Maria Antónia (2010), Proteção social em Portugal na Idade Moderna, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra.

Sá, Isabel dos Guimarães (2013), As Misericórdias Portuguesas séculos XVI a XVIII, Fundação Getúlio Vargas.