Mariano Cabaço, responsável pelo Gabinete de Património Cultural e Centro de Formação Profissional da UMP, propõe na edição de abril do jornal “Voz das Misericórdias” uma carta de compromisso para as Misericórdias, onde reflete sobre os principais desafios do contexto atual e a emergência de uma “nova ordem civilizacional” que se impõe na gestão da casa comum, inspirada no “ideário programático das obras de misericórdia”.

No início de 2020 fomos surpreendidos por um vírus que nos impôs a paragem brusca da vida. Durante um ano, em que fomos forçados ao recolhimento e mantidos em isolamento, foi com surpresa e medo que vivenciámos a paragem de todas as dinâmicas sociais, económicas, políticas e culturais.

Afinal, mesmo com dogmáticas trajetórias de competição e sucessos pessoais, foi possível cancelar projetos, suspender percursos e adiar decisões.

Tudo o que tínhamos por adquirido e imutável foi questionado, exigindo-nos uma análise realista aos modos de vida, com as suas condicionantes e seus verdadeiros valores. Ficámos a conhecer vulnerabilidades que teimávamos ignorar em nome da ambição, sempre prioritária, do poder e do ter.

Chegados ao ponto em que durante um ano fomos forçados a parar, adiar e desistir, será desejável que, neste arranque de esperança que a vacina nos permite, não voltemos ao normal da vida que vínhamos trilhando.

Devemos, depois de tudo o que passámos e ainda vamos vivenciar nos tempos próximos, adotar uma nova forma de estar e viver em comunidade. Para isso, mais uma vez as Misericórdias, com o seu ideário programático das obras de misericórdia, podem acrescentar valor às opções que viermos a tomar.

A sua história secular de serviço e humanismo, patentes no esforço que assumiram nesta pandemia e no que lhes vai ser pedido para enfrentar a crise social que se avizinha, conferem-lhes essa legitimidade. 

Uma nova ordem civilizacional impõe-se na gestão da casa comum e, para isso, num modesto, mas sugestivo exercício, propomos um conjunto de conceitos que poderiam traduzir uma carta de compromisso para todos.

Obras de misericórdia corporais

Dar de comer a quem tem fome. Produção alimentar sustentável. Distribuição ética dos bens de consumo. Comércio justo. Economia honesta. Consumos sem desperdício. Mais cooperação e menos competição.

Dar de beber a quem tem sede. Gestão equilibrada dos recursos hídricos. Defesa do meio ambiente. Consciência e ação ecológica. Acesso universal a água potável e saneamento básico.

Vestir os nus. Habitação condigna para todos. Combate à pobreza a vários níveis. Ajuda solidária e desinteressada. Fim da exploração de mão de obra barata. Consumo regrado de bens.

Dar pousada aos peregrinos. Acolhimento de todos na dignidade de pessoa humana. Acabar com o flagelo dos migrantes, refugiados e sem abrigo. Melhorar a institucionalização de idosos e pessoas com deficiência.

Cuidar dos enfermos. Reforçar os meios e a gestão do Serviço Nacional de Saúde. Investir na gestão partilhada e complementar dos serviços de saúde. Democratizar o acesso aos medicamentos. Reforçar a investigação científica.

Visitar os presos. Visitar e apoiar todos os que estão sós em casa. Ajudar os que estão prisioneiros de vícios e explorações indignas. Exercer na proximidade a cidadania da gratuidade.

Enterrar os mortos. Enterrar os procedimentos que destroem o planeta e as relações sociais. Combater os egoísmos, a ganância, o lucro sem ética e o enriquecimento ilícito. Enterrar os conflitos e as desigualdades entre nações.

Obras de misericórdia espirituais

Dar bons conselhos. Mudar o paradigma do relacionamento entre pessoas e povos. Ajudar e não impor. Estar próximo sem indiferença. Sugerir e não exigir. Valorizar o ser e o saber em detrimento do ter.

Ensinar os ignorantes. Aumentar os níveis de escolaridade. Investir na cultura e no conhecimento. Valorizar os meios de comunicação social em proximidade e verdade. Educar para os valores da solidariedade.

Corrigir os que erram. Aceitar o erro com tolerância. Privilegiar o acolhimento e o perdão. Aceitar a opinião diferente com normalidade e compreensão. Combater as aparências e as invejas. Valorizar o que é original, natural e sincero.

Consolar os tristes. Encontrar a felicidade nas pequenas coisas das relações pessoais, profissionais e sociais. Olhar para o outro de forma desinteressada e com verdadeiro afeto. Combater a solidão e o vazio.

Perdoar as injúrias. Aceitar com serenidade o que é diferente. Acolher com humildade a opinião oposta. Aceitar com normalidade as opções do contraditório. Respeitar diferentes culturas, promovendo políticas de coesão e comunhão.

Sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo. Promover relacionamentos verdadeiros. Mobilizar diferentes vontades para fins comuns. Humanizar o estilo de vida em comunidade. Acolher e não abandonar. Aceitar sem criticar.

Rezar a Deus por vivos e defuntos. Maior espiritualidade para enfrentar os desafios e promover a felicidade. Aceitar o ecumenismo de credos diferentes. Unir os destinos no sagrado e no conforto espiritual de cada vida. Ter uma atitude contemplativa sobre a beleza da vida, sobre a capacidade das pessoas e sobre o mérito dos comportamentos.

Como jamais voltaremos à normalidade do passado recente, seria bom termos coragem para arriscar alguns destes princípios fundacionais do novo normal que forçosamente teremos de construir.

No tempo e no espaço que nos esperam, e que habitamos, teremos a possibilidade única de ser agentes de mudança.

Não desperdicemos a oportunidade que esta crise nos oferece.

Mariano Cabaço, União das Misericórdias Portuguesas