Doze Misericórdias participam no projeto ‘Já Dizia A Minha Avó’, que tem carimbado a solidão da pandemia com palavras escritas, remetidas em envelope fechado

Os dedos da mão estranham a caneta. Agiganta-se a ansiedade da folha em branco perante a certeza da morada do destinatário no sobrescrito. Um momento de introspeção para escrever palavras que estreitarão elos afetivos. Eis o papel timbrado do projeto “Já Dizia A Minha Avó”, que nasceu, em plena pandemia, para quebrar a solidão e o isolamento de muitos idosos institucionalizados.

“A ideia surgiu de um desejo profundo de ajudar a população mais envelhecida. Por isso, decidimos recuar no tempo e adaptarmo-nos aos hábitos do antigamente”, justificam as mentoras. A filosofia é simples: recuperar esse ritual longínquo de escrever cartas para aproximar diferentes gerações.

Lançado a 25 de dezembro no Instagram, o projeto estreou-se na correspondência entre idosos e voluntários a 7 de janeiro. Desde então, não parou de crescer para surpresa e satisfação de quem o idealizou: “é um orgulho imenso ver que, a cada dia, estamos a conseguir chegar a mais pessoas”.

As Misericórdias de Alenquer, Albergaria-a-Velha, Alverca, Azinhaga, Castelo Branco, Constância, Ferreira do Alentejo, Grândola, Montargil, Ponte de Sor, Sarzedas e Torres Vedras já abraçaram a causa.

“A pandemia teve um impacto avassalador na população idosa que a Misericórdia de Ponte de Sor apoia, sobretudo ao nível emocional e afetivo. Os efeitos negativos da solidão estão à vista, mas este projeto pode contribuir para o aumento do bem-estar psicológico de um cada vez maior número de utentes”, refere a psicóloga Liliana de Matos. Sempre que o carteiro traz a correspondência aos quatro utentes é “notória a felicidade”: “esboçam o maior dos sorrisos, curiosos com as novidades do exterior”.

Um pouco mais a sul, em Montargil, a diretora técnica reconhece que tem sido “uma lufada de ar fresco para os utentes se distraírem um pouco e se abstraírem da situação que estão a viver”. “Eles passam a vida isolados e sem visitas. O tema de conversa é que vão morrer sem ver ninguém e com isto sabem que há outras pessoas lá fora que se preocupam com eles”, observa Regina Silva.

Sara Carvalho, animadora sociocultural na Misericórdia de Grândola, sublinha o momento oportuno: “estamos em tempos atípicos e isto veio dar-lhes alguma luz, alguma esperança de um dia poderem conhecer estas pessoas”. Já na Santa Casa de Torres Vedras, os utentes precisam de “sentir que alguém que está no exterior está próximo”. “O mais importante neste projeto é que vieram à procura deles e não fomos nós – instituição. Foram estes jovens que se lembraram que existem utentes aqui e que querem saber um pouco sobre eles. Isso fê-los sentirem-se valorizados”, considera Cátia Samora, animadora sociocultural.

As inquietações iniciais desapareceram quando perceberam que o que se pretendia era “conhecê-los como pessoas e não como utentes de uma instituição”. “Isto é um amigo que não os conhece, mas que quer saber de onde é que eles eram, o que faziam, com quem é que conviviam, em que trabalhavam e não o que é que fazem no lar, no dia a dia.”

Missão de ‘pombo-correio’

Para que as palavras encontrem o ancoradouro certo, é preciso a sagacidade e a sensibilidade de seis jovens estudantes: Ana Catarina Venâncio, natural de Lisboa, Joana Barata, de Castelo Branco, Laura Rosa, de Porto de Mós, Liana Asseiceiro, de Arruda dos Vinhos, Madalena dos Santos, de Oeiras, e Maria de Almeida, residente em Lisboa. Todas estudam e dedicam, agora, os seus tempos livres ao projeto “Já Dizia a Minha Avó”.

“Conhecemo-nos no Instituto Superior de Agronomia onde frequentamos a licenciatura de Engenharia Agronómica e somos grandes amigas”, revelam. Apesar de terem crescido com a omnipresença das novas tecnologias, assumem que tiveram uma infância “minimamente à antiga”. Contudo, os mais velhos “não estão tão à vontade” com estas ferramentas, o que fez com que decidissem que “o mais interessante (e justo) seria colocar os jovens numa situação que não dominam e que não é propriamente a sua zona de conforto”. Assim, as duas partes ficam a ganhar: os idosos podem recordar os velhos tempos e retomar a prática da escrita, enquanto os voluntários têm a oportunidade de “aprofundar outra realidade e principalmente de se desapegar do imediato”. “Com as redes sociais e as mensagens, não estamos habituados a esperar muito tempo por uma resposta. Por isso, ficam sempre ansiosos por saber se a carta já chegou ao destino ou por receberem a resposta.”

Com a propriedade dos seus 19 e 20 anos, elas acreditam verdadeiramente que têm “muito a aprender com as gerações mais antigas”. A gestão e a logística subjacentes ao projeto implicam uma organização eficiente, porque todas as tarefas têm de ser conciliadas com a faculdade e, por vezes, “não é muito fácil”. “No entanto, é com muito gosto que o fazemos. O feedback é extremamente gratificante e relembra-nos que é uma experiência pela qual valeu muito a pena aventurarmo-nos.”

Com a situação pandémica a afetar a vida social de todos, há ainda o objetivo paralelo de contribuir para a saúde mental dos voluntários. A experiência de Teresa Rita, 22 anos, atesta essa realidade: “ajudou-me a combater a solidão derivada de um confinamento”. “Uma pessoa sente a obrigação de estar em casa, para se proteger a si e aos seus, e isso acaba por trazer uma certa solidão que por vezes até passa despercebida. Com este projeto, pude dedicar algum tempo a pensar no que escrever e a ler aquilo que foi escrito e, sobretudo, dedicar algum tempo a conhecer alguém com quem nunca teria a oportunidade de conviver se não fosse o "Já Dizia a Minha Avó".”

Selar o ‘match’ perfeito

Não há requisitos obrigatórios para quem se quiser associar, além da motivação de fazer companhia à boleia das palavras, partilhando experiências, conhecimentos e afetos.

“No início, achei que seria complicado encontrar temas de conversa, mas consoante fui escrevendo, as palavras simplesmente fluíram”, revela Teresa Rita. Na resposta, ficou a saber como é que a sua avó adotiva conheceu o marido, a idade em que foi mãe, todas as saídas que fazia para Lisboa para dançar. A estudante de mestrado em Engenharia Agronómica ficou surpreendida com o 'à vontade' e a empatia, essa, vai-se escrevendo nas entrelinhas: “adorei conhecer a minha avózinha emprestada e ler sobre a sua vida e os seus passatempos quando tinha a minha idade”.

Tudo começa pela inscrição dos idosos e dos voluntários. Estes últimos podem inscrever-se através das redes sociais ou website do projeto. O mesmo podem fazer os idosos ou através das instituições que as mentoras contactam. “As informações ficam na nossa base de dados onde, por ordem de inscrição, é feita a correspondência entre o jovem e o idoso.” A grande dificuldade tem sido conseguir a adesão dos lares, “tanto que há muitos jovens em lista de espera”. “Para além disso, o ritmo de resposta por parte das instituições é muito inferior ao da adesão dos voluntários, o que por vezes os desmotiva”, explicam.

A primeira carta de conhecimento dos netos e netas para os avós da Misericórdia de Albergaria-a-Velha já chegou. “Notou-se uma grande satisfação por receber uma carta, porque já é muito raro. Foi engraçado que uma utente recebeu um postal e era de uma atriz de uma novela e ficou toda vaidosa por ter uma pessoa conhecida”, conta a animadora Madalena Tavares, sublinhando que o momento em que estão a ler ou a escrever a carta é “uma coisa sã”.

Tríade do reverso

O “Já Dizia a Minha Avó” é parceiro na promoção da saúde mental, estimulação cognitiva e valorização social. “Este projeto impulsiona os idosos para a socialização, promovendo maior autoestima e potenciando o seu papel social na comunidade. O bem-estar dos idosos passa também, muitas vezes, por fazê-los sorrir. Um ato de grande importância, sobretudo no contexto em que vivemos”, relata a psicóloga da Misericórdia de Ponte de Sor.

As cartas trazem “um passado de volta, a memória de uma juventude”. Liliana de Matos invoca as palavras da utente Maria Ratel Duarte para confirmar o elã: «aquelas cartas são vida, fazem-me recordar os meus tempos de jovem».

Esta iniciativa é também um escape para os idosos que não têm interesse em atividades em grupo. “Tem sido muito enriquecedor porque estão a trabalhar autonomamente e eu dou apenas um apoio. Acabam por conseguir reavivar todas aquelas áreas da leitura e da escrita. Depois, receber uma carta de alguém jovem, que se interessa, tem um significado especial”, refere a animadora da Misericórdia de Grândola.

Inicialmente, os oito utentes estavam “um bocadinho reticentes”. “Até tive uma utente que me perguntou se não era eu que escrevia, estava desconfiada se havia mesmo alguém do outro lado”, confidencia Sara Carvalho. Alguns voluntários enviaram fotografias e os idosos perceberam que, afinal, era mesmo verdade. “Tem sido espetacular, porque têm a esperança de um dia virem a encontrar estas pessoas. Já tivemos uma situação em que a jovem estava de passagem e acabou por parar na instituição, conseguir chamar a avó emprestada e dizer adeus de longe.”

Missivas intergeracionais

O “Já Dizia a Minha Avó” conta com 460 seniores, residentes em 44 instituições de Portugal Continental e ilhas, e mais de 800 voluntários. “Quando temos o privilégio de receber fotografias dos idosos com as cartas dos seus “netos” e vemos a sua alegria e entusiasmo dá-nos sempre aquela motivação extra e deixa-nos de coração cheio”, declaram as promotoras.

Na Misericórdia de Castelo Branco, o projeto tem 12 destinatários, que estavam sedentos para saber “quem seriam os voluntários e o que poderiam ter para lhes dizer”. Quando receberam as primeiras missivas, ficaram “contentes e com vontade de responder”. “Sentiram um grande carinho e que ‘alguém’ estava preocupado com eles”, assegura a equipa do serviço social.

A publicação de uma amiga nas redes sociais despertou a curiosidade de Tiago Pais, 36 anos. Foi pesquisar e bastaram 15 minutos para se associar à legião de voluntários. “Fi-lo porque fui muito próximo dos meus avós e sei bem que a solidão na terceira idade é um problema real: lembro-me de visitar o meu avô num lar, numa altura em que já estava bastante doente, e de ver lá pessoas que não recebiam qualquer visita semanas a fio.”

A missão de comunicar é, neste caso, facilitada. “Não é difícil ter assunto: sou jornalista, tenho uma curiosidade inata, gosto muito de fazer perguntas e de saber mais sobre as pessoas.” Mas as quatro cartas trocadas com o “avô” Mariano têm um valor acrescentado. “Estou a corresponder-me com uma pessoa de 92 anos, que tem uma história de vida completamente diferente da minha, com quem posso aprender e a quem posso dedicar algum do meu tempo para tornar alguns dos seus dias no lar mais alegres.” Se o projeto se extinguir, Tiago vai continuar a escrever, a partir de Lisboa, ao utente da Misericórdia de Montargil e admite a possibilidade de o conhecer pessoalmente.

Foi também graças a uma amiga que Rita Ferreira, 19 anos, se tornou voluntária no início do ano. “Achei muito interessante pelo facto de terem sido pessoas da minha idade a darem vida a uma coisa que já não se usa – as cartas.” A experiência tem sido positiva, porque “o senhor foi muito recetivo, inclusive mandou uma fotografia e contou várias coisas pessoais”. “Transpareceu, na carta, que estava mesmo feliz e contente por estar a fazer isto, tanto que me agradeceu e chamou-me amiga Rita”, confidencia.

Quando o envelope da Misericórdia da Azinhaga, onde vive o seu “avô” Manuel, lhe chegou às mãos, Rita ficou “muito contente” por ser algo a que não estava habituada. “Era mesmo letra escrita e não um email e ver isso hoje em dia é um bocado raro.”

Para a estudante de design, estrear-se nestas lides da correspondência postal também tem “ajudado a crescer”. “Conhecer a experiência de vida de outras pessoas ajuda a valorizar o que eu tenho. Este senhor veio de um meio muito pobre e tem uma vida completamente diferente da minha, também é bom para perceber como era a vida antigamente e como é agora.”

Carta para o futuro

Surgido para minimizar o impacto do novo coronavírus junto das populações mais envelhecidas, a iniciativa “Já Dizia a Minha Avó” tem os olhos postos no futuro. “O isolamento da população idosa é, infelizmente, um problema constante em Portugal e que se viu agravado com a pandemia, mas não deriva dela. Por isso, após a pandemia, iremos dedicar-nos tanto ao projeto como agora”, declaram as mentoras. Há até novos desafios: chegar aos seniores não institucionalizados e que se encontram isolados e sem companhia. “Estamos a iniciar contactos com juntas de freguesia e centros de saúde que nos poderão dar apoio. Também queremos chegar a zonas mais rurais, onde é ainda mais difícil estes idosos terem contacto humano e companhia”, adiantam. É nestes territórios mais desertificados que as Misericórdias podem ser “um grande auxílio”: “como têm programas de apoio aos mais carenciados, será mais fácil chegar aos idosos isolados”.

Dos feedbacks e testemunhos que lhes chegam, as promotoras sabem que “já se criaram amizades bonitas, com a promessa de se encontrarem quando a pandemia terminar”. A voluntária Teresa Rita está disposta a levar a carta a Garcia, desde que a sua “avózinha emprestada” assim o deseje: “gostaria muito de continuar a corresponder-me com ela e quem sabe, quando a situação relativa à Covid-19 melhorar, a possa vir a visitar pessoalmente e conhecê-la também fisicamente”. “Através da correspondência, consegui criar laços com esta senhora e seria uma perda muito grande deixar de falar com ela e acompanhar a sua vida”, conclui.

Voz das Misericórdias, Patrícia Posse