Projeto ‘Não Estamos Sós’ surgiu para acompanhar os idosos do centro de dia em situação de maior vulnerabilidade e isogamete

Estivemos à janela de uma das “Avós do Mar”, no início de maio. Em margens opostas do Tejo, mas unidas pela partilha de histórias e recordações do mundo lá fora, através de um ecrã de telemóvel. Vicência Lopes, 87 anos, recebeu-nos com um sorriso que faz sentir qualquer um em casa, apesar da distância de segurança. Nos últimos dois meses, trocou as atividades do Centro Social da Trafaria, onde se incluem as aulas de culinária que lhe trouxeram a fama, pelas costuras e palavras cruzadas em casa. O VM foi conhecer o projeto “Não Estamos Sós”, da Misericórdia de Almada, que dá novo sentido aos dias de Vicência e outros idosos em confinamento. Foi a primeira reportagem por videochamada, desde o início da pandemia.

Todas as semanas, a equipa do Centro Social da Trafaria (CST) leva refeições e uma palavra amiga a idosos que frequentam o centro de dia. O espaço físico foi encerrado, mas a ligação mantém-se e nalguns casos foi reforçada com atividades de lazer e estimulação cognitiva ao domicílio, desenvolvidas pela equipa do “Não Estamos Sós”.

O projeto surgiu como resposta ao confinamento obrigatório da população, que colocou os idosos do centro de dia numa situação de maior vulnerabilidade e isolamento. Identificadas as principais necessidades, foi definida uma equipa e estratégia diferenciada para garantir o acompanhamento individualizado, consoante as patologias, perfis e interesses.

Da ideia à concretização passaram poucos dias. “Foi tudo feito em contrarrelógio, tivemos de adaptar a intervenção, com três elementos da área educativa, que saíram da zona de conforto e abraçaram este projeto que leva sorrisos, amor e esperança”, explicou a socióloga e técnica de centro de dia, Soraia Silveira, que integra a equipa.

Aprender a lidar com a solidão, quando a espera parece não ter fim, não é tarefa fácil para os idosos que visitam. Apesar da retaguarda familiar e apoio de técnicos e voluntários, alguns não prescindem da ida ao supermercado. Não é o caso de Vicência Lopes, que ocupa os dias entre costuras, conversas à janela e caminhadas, no exterior da moradia térrea, com vasos à porta e roupa no estendal. “Os meus dias são passados a costurar malhas, a fazer sopa de letras, a ouvir rádio, nesta casa há sempre que fazer. Sabe bem estar aqui sossegada, mas nunca estou sozinha. Vem cá a Joana e outros jovens. Passam-se bem os dias”.

No dia do nosso telefonema, os jovens estacionam a bicicleta à porta da sua casa. Conheceram-se nas aulas de culinária para turistas, promovidas no CST ao abrigo da parceria com a empresa de turismo social “Varina”. Nunca mais se largaram e agora são avós e netos do mar, com uma ligação emocional que Joana Silva, fundadora da “Varina”, não esconde. “Somos socialmente responsáveis, mas a nossa relação com as avós é a coisa mais importante para nós. Somos a equipa da Varina, mas estamos aqui como pessoas da comunidade, como Joana, Gonçalo, Rita e Diana. O mais gratificante tem sido manter contacto com estas avós, que nos são muito queridas. É o ponto alto do nosso dia, sair de casa e vê-las”.

Camuflados por máscaras, os sorrisos revelam-se nos olhos e gestos de amizade que se renovam todas as semanas, nas habitações espalhadas pela Trafaria e Caparica. Enquanto a vida não regressa à normalidade, os voluntários e técnicos da Misericórdia de Almada dinamizam jogos, canções de roda, momentos de leitura e partilha de histórias para ajudar a ocupar as horas, reavivar memórias e recordar momentos felizes. Sempre munidos dos equipamentos de proteção individual e desinfetantes e, quando possível, no exterior.

A Covid-19 impôs uma reorganização interna que, segundo o provedor Joaquim Barbosa, só foi possível com uma “enorme solidariedade entre as equipas” e a “dedicação e carinho pelos utentes”. Não se cansa por isso de enaltecer, ao longo da conversa, as “equipas dinâmicas, que não regatearam esforços, nem se esconderam com medo. Chegaram-se à frente e mantiveram relacionamento com os idosos e famílias, utilizando a estratégia mais adequada a cada caso. Foram inexcedíveis”.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas