O século XX foi de conquistas para as mulheres. Em pleno século XXI, persistem desigualdades e as Misericórdias têm contribuído para atenuá-las

O século XX foi de conquistas para as mulheres. Foi-lhes dado acesso à educação, ao voto, ao mercado de trabalho, à contraceção e interrupção voluntária da gravidez. Deram-se passos importantes na desconstrução de estereótipos e participação cívica das mulheres, mas ainda é preciso lembrar que os “direitos das mulheres são direitos humanos”, como fez o secretário-geral da ONU, António Guterres, no Dia Internacional da Mulher. Em pleno século XXI, persistem desigualdades salariais e desequilíbrios na distribuição de tarefas domésticas, limitações no acesso a cargos de chefia e diferentes formas de violência acompanhadas de discurso de ódio contra as mulheres. Por essa razão a igualdade de género é um dos 17 objetivos da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável da ONU. 

Com uma força laboral composta maioritariamente por mulheres, as Misericórdias refletem estes avanços e recuos civilizacionais na sua estrutura orgânica e atividade assistencial, incluindo cada vez mais mulheres nas mesas administrativas (63 provedoras, um aumento de 14,5% face a 2018) e promovendo respostas vocacionadas para o apoio à maternidade, aconselhamento e acolhimento de vítimas de violência doméstica e sensibilização para a igualdade de género.

Capacitar, promover a criação de emprego e conciliação da vida pessoal e profissional, garantir a segurança e bem-estar da mulher, em várias fases da sua vida, são objetivos da maioria dos projetos desta natureza, que na sua génese assentam na defesa e concretização de direitos fundamentais expressos na Constituição da República Portuguesa.

Em Almada e Praia da Vitória (Açores), o reconhecimento e exercício pleno desses direitos, numa perspetiva de cidadania global, é transmitido desde cedo, através de abordagens criativas que cativam crianças e jovens. A sensibilização e educação para a igualdade de género insere-se numa estratégica de educação para a cidadania, que desconstrói estereótipos associados ao papel da mulher e homem na sociedade. 

No Centro Social da Trafaria (Almada), as crianças aprendem a exercer os seus direitos, em diálogo e respeito pelos outros, mesmo antes de aprender a escrever. Num território marcado pela fronteira entre dois bairros ilegais e um bairro social, o papel das educadoras da creche e pré-escolar passa por transmitir valores de pluralismo e igualdade entre homens e mulheres.

Os bonecos de trapos, elaborados por uma utente de centro de dia (Libânia Anjos, 94 anos), são o veículo transmissor desta mensagem de esperança e igualdade, representando profissões (médica/o, enfermeira/o, bombeiro/a etc.) que podem ser exercidas por todos. No dia-a-dia, isso significa que todos podem usar azul e cor de rosa ou brincar com jogos, bonecas e automóveis.

As famílias são frequentemente chamadas a participar nesta reflexão, como aconteceu a 08 de março, por ocasião do Dia Internacional da Mulher. Nessa data, foram convidadas a deixar mensagens num cartaz colocado na entrada do equipamento, onde transpareceram desabafos e ambições associadas à “luta pela igualdade”, “independência”, “coragem para enfrentar obstáculos” e conciliação de múltiplos papéis (“amiga, mãe, psicóloga e enfermeira”).

Em Praia da Vitória, a promoção da igualdade de oportunidades é um dos quatro eixos de intervenção do Núcleo de Iniciativas de Prevenção e Combate à Violência Doméstica, onde se incluem ainda a sensibilização e prevenção da violência, intervenção psicoterapêutica junto de vítimas de violência doméstica e formação de profissionais (saúde, forças policiais, ensino).

Nos primeiros contactos com as crianças e jovens, a equipa constituída por duas psicólogas percebeu que antes de abordar o tema da violência tinha de ir à génese do problema. “Falar de igualdade e respeito pelo outro, dos papéis do homem e mulher”, explica Letícia Leal. Recorreram por isso a histórias infantojuvenis da sua autoria e peças de teatro com fantoches para frisar a importância das relações afetivas saudáveis e alertar para os riscos do bullying e racismo. “Já temos sete histórias originais e uma editada em livro, “A Magia da Amizade”. As crianças identificam-se com a partilha de carinho e afetos”.

Estudos indicam que serão precisos cerca de 200 anos para atingir a igualdade salarial (Fórum Económico Mundial, 2018) e a repartição equitativa do tempo dedicado às tarefas domésticas (Organização Internacional do Trabalho, 2019). Nesse mesmo estudo da OIT, a maternidade é apontada como obstáculo na carreira profissional das mulheres.

Sendo ainda escassos os casos de empresas e entidades com medidas de conciliação da vida pessoal e profissional (como teletrabalho, flexibilidade de horário e outros benefícios) começam a surgir exemplos como o de Riba de Ave, onde os colaboradores beneficiam de um apoio financeiro no período de ausência por licença de parentalidade, apoio na mensalidade da creche, pré-escolar e ATL e transporte gratuito entre a sede e centro infantil. Os resultados foram notórios nos primeiros anos de implementação das medidas: “passámos de 4 ou 6 partos em 2014 e 2015 para 46 em 2016 e 2017”, verificou o administrador Salazar Coimbra.

Ações de formação sobre gravidez, parto e cuidados ao recém-nascido, como as promovidas em Oliveira do Bairro no âmbito do “Programa de preparação para o parto e parentalidade”, são outro tipo de respostas vocacionadas para o apoio à maternidade. Neste caso, a Misericórdia associou-se ao centro de saúde local para dar início a um programa de saúde gratuito que, segundo a enfermeira coordenadora Carina Coutinho, visa “dotar os casais do concelho de competências e transmitir segurança e tranquilidade nesta fase da vida”.

Quando os incentivos à natalidade não são suficientes para fazer face ao despovoamento no interior do país, Misericórdias como a de Vimioso aliam-se à autarquia para fornecer respostas concretas às famílias. Neste caso, faltava um espaço para acolher as crianças nascidas no concelho e a Santa Casa abriu uma creche com mensalidades reduzidas. “Não bastava mandar vir os garotos, era preciso ter onde deixá-los. Agora os casais, muitos deles colaboradores nossos, começam a ter dois filhos”, constata o provedor Francisco Machado, que destacou a renovação geracional do concelho, nos últimos 9 anos, com a criação de 50 postos de trabalho.

As mudanças são graduais, mas vão acontecendo mesmo entre as gerações mais velhas. Em São Brás de Alportel, são as mulheres com mais de 60 anos que protagonizam esta revolução silenciosa servindo-se de um núcleo museológico como espaço de emancipação. Tudo começou em 2005, quando a autarquia decidiu criar um espaço no Sítio de Alportel para contar a história local. Desde então, as regras são ditadas pelo conjunto de 15 mulheres que gere o espaço (zona de exposições, convívio e auditório) e garante a sua abertura. “As pessoas queriam um lugar que as tirasse de casa porque os maridos tinham do outro lado da rua o clube recreativo, para jogar cartas e beber, e ganharam a sua liberdade”, conta Emanuel Sancho, diretor do museu da Santa Casa, envolvido na conceção do projeto museológico.

Depois de tantos avanços civilizacionais - acesso ao ensino, trabalho remunerado, participação política, proibição da mutilação genital feminina e do casamento infantil, em muitos países -, a igualdade de género continua a ser uma questão de direitos humanos que nos afeta a todos. António Guterres, secretário geral da ONU, vai mais longe e coloca o “empoderamento das mulheres no coração da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, justificando que esse progresso e participação das mulheres vai “fazer avançar comunidades”, “torna os acordos de paz mais fortes, as sociedades mais resilientes e as economias mais vigorosas”.

Leia o enquadrameno histórico desta temática aqui: De papel relegado à participação ativa

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas

Ilustrações: Sara da Mata